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sexta-feira, 13 de julho de 2012

POLIFONIA, DIALOGISMO E GÊNEROS: A PRESENÇA DE BAKHTIN NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNA


  1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, com o desenvolvimento de pesquisas e com a adoção de políticas educacionais direcionadas a abordagem dos fenômenos de linguagem a partir de uma perspectiva social, algumas obras e alguns autores ganharam grande destaque.
No Brasil, um dos autores que mais tem influenciado os estudos nessa área é Mikhail Mikhailóvitch Bakhtin. Formado em São Petersburgo, onde cursou estudos clássicos na Faculdade Filológico-Histórica, o pensador russo é considerado um dos maiores filósofos da linguagem de todos os tempos. Conceitos como autor, autoria, estilo, significação, polifonia, dialogismo e gêneros do discurso destacam-se em sua produção. A principal característica de sua obra é a análise da linguagem dentro de um processo interativo. Em seus trabalhos a observação da língua sempre ocorre sob a ótica da relação dialética indivíduo/sociedade, em um universo em que se interpenetram o individual e o social. Desde a década de 1980, período em que a obra de Bakhtin começou a ganhar espaço em nosso país, até os dias atuais, podemos notar que as concepções do autor ampliaram sua área de influência, estendendo-se de professores e pesquisadores a vários documentos oficiais do sistema de ensino brasileiro. Atualmente, mais que objetos de interesse no contexto escolar e acadêmico, o pensamento bakhtiniano tem emergido como norteador dos eixos de sustentação das novas propostas ao ensino de língua materna. Neste artigo, considerando que os atuais parâmetros educacionais brasileiros observam o ensino de Língua Portuguesa mediado pela interação e pela troca de experiências lingüísticas, buscaremos identificar a “presença” de Bakhtin nas aulas dessa área. Para isso, enfatizaremos três importantes conceitos trabalhados pelo russo: polifonia, dialogismo e gênero do discurso. A nosso ver, a perfeita compreensão dessas três concepções oferece aos professores - e consequentemente aos alunos - maior possibilidade de compreensão e de visualização da língua como ferramenta interativa.

2. POLIFONIA
A introdução do conceito de polifonia no universo das ciências da linguagem deve-se aos trabalhos realizados por Bakhtin para caracterizar o romance de Dostoiévski. A abordagem do tema remete-nos a um ponto essencial da obra bakhtiniana: a relação autor-herói. Segundo Faraco (2006, p. 46), a “teorização sobre a relação estética entre autor e herói passa por um significativo refinamento quando Bakhtin analisa a narrativa de Dostoiévski”, pois, através desse exame, torna-se possível a visualização de uma nova posição artística: um cenário no qual a voz autoral e a voz do herói são colocadas em um mesmo plano.
A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis. (BAKHTIN, 1981, p. 03)

Segundo Bakhtin, o termo “voz” refere-se à consciência falante que se faz presente nos enunciados. Tal consciência não é neutra, está sempre refletindo percepções de mundo, juízos e valores. Para ele, a análise das personagens de Dostoievski permite-nos identificar a presença desses diferentes pontos de vista da sociedade.

A personagem interessa a Dostoiévski enquanto ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante. Para Dostoiévski não importa o que sua personagem é no mundo, mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma. (BAKHTIN, 1981, p.46)

Florêncio (2002) ressalta que a polifonia manifesta-se em certos tipos de textos que deixam entrever outras vozes. Em alguns discursos, é o “acionamento” dessa polifonia que permite aos interlocutores escutar as diferentes vozes, sem disfarçá-las”.

3. DIALOGISMO

De acordo com Freitas (1997), os estudos bakhtinianos buscavam um entrelaçamento entre sujeito e objeto, baseando-se em uma síntese dialética inserida em um universo cultural e histórico. Nessa concepção, a língua não pode ser entendida como se fosse um sistema abstrato de normas, haja vista que ela apresenta uma realidade extremamente dinâmica e viva diante das interações verbais dos interlocutores, estando, assim, em constante evolução. Destarte, não se pode restringi-la ou distanciá-la de sua realidade evolutiva. Por isso, a noção de alteridade ocupa um lugar de destaque no universo bakhtiniano. Para Clark e Holquist (1998), a alteridade reconhece um destinatário ativo, um ser que não se limita à compreensão passiva diante do locutor. Trata-se de um destinatário que reage de modo responsivo à fala/mensagem recebida, produzindo respostas (ora concordantes, ora discordantes) que se relacionam em um plano dialógico. É sob tal ótica que se desenvolve o pensamento de Bakhtin acerca do dialogismo, o qual alude ao permanente diálogo travado entre os diversos discursos que circulam na sociedade, devendo, por isso, ser visualizado e reconhecido como elemento responsável pela instauração da natureza interdiscursiva da linguagem. Kock (2001, p. 50), aproximando-se dessa perspectiva, descreve o dialogismo como constitutivo da linguagem; segundo a autora, a palavra é o produto da relação “recíproca entre
falante e ouvinte, emissor e receptor. Cada palavra expressa o „um em relação ao outro. Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista da comunidade a que pertenço”. Bakhtin considera que a palavra, por ser o território comum do locutor e do interlocutor, comporta duas faces: é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela representa o produto da interação locutor/ouvinte, servindo de expressão de um em relação ao outro. Segundo o pensador russo, é através da palavra que me defino em relação ao outro, à coletividade; é no perímetro das relações interpessoais, mediadas pela linguagem, que os homens constroem conhecimento e se estabelecem no meio social. Para (Freitas, 1997, p. 320), sem o outro “o homem não mergulha no mundo sígnico, não penetra na corrente da linguagem, não se desenvolve, não realiza aprendizagens, não ascende às funções psíquicas superiores, não forma a sua consciência”, enfim, não consegue se constituir como sujeito.

4. A QUESTÃO DOS GÊNEROS: UMA ABORDAGEM SOCIOINTERACIONAL DA LINGUAGEM

A interação, através da linguagem, implica em realização de uma atividade discursiva, pois, de certo modo, diz-se alguma coisa a alguém, em um determinado contexto sócio-histórico levando-se em conta determinadas situações de interlocução. Para Bakhtin, as relações existentes entre linguagem e sociedade são indissociáveis. Ele defende que as diferentes esferas da atividade humana, compreendidas como domínios ideológicos, dialogam entre si e produzem, em cada esfera, formas relativamente estáveis de enunciados, as quais denomina gêneros discursivos. Por isso, em seus trabalhos, considera que o emprego da língua ocorre em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, os quais são proferidos pelos vários integrantes que ocupam os diversos campos da atividade humana. Esses enunciados, por sua vez, tendem a refletir as especificidades e as condições singulares dos referidos campos. De acordo com a tese bakhtiniana, os gêneros caracterizam-se pela dinamicidade e diversidade. Por serem oriundos das relações sociais, eles sofrem, incessantemente, influência das transformações que ocorrem na sociedade, ampliando-se à medida que se complexifica o campo das atividades humanas.
Essa heterogeneidade leva o filósofo russo a diferenciar os gêneros do discurso em primários e secundários. “Trata-se de uma distinção que dimensiona as esferas de uso da linguagem em processo dialógico-interativo” (MACHADO, 2006, p. 155). Os gêneros primários, considerados simples, são aqueles utilizados na comunicação cotidiana, resultam da troca verbal espontânea. Manifestam-se em bilhetes, diálogo, cartas familiares, entre outros. Os gêneros secundários, considerados complexos, não são espontâneos. Originam-se de uma comunicação cultural mais elaborada, fazendo parte de um uso mais oficializado da linguagem. Eles são determinados por dimensões específicas da comunicação, materializam-se em romances, textos científicos, textos jornalísticos, discursos políticos, entre outros. Porém, apesar dessa diferenciação, devemos ressaltar que os gêneros primários são os instrumentos de criação dos gêneros secundários, as duas categorias mantém certa interdependência. Segundo Schneuwly e Dolz (2004), a transição de um nível a outro se dá em meio a um processo de continuidade e ruptura. Continuidade porque a passagem para um novo sistema apóia-se sobre a experiência do sistema antecedente (gêneros primários); e ruptura porque as novas condições de produção (gêneros secundários) são muito diferentes das circunstâncias presentes no sistema antigo.

5. OS GÊNEROS E O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Com a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, abriu-se a possibilidade de grandes mudanças no sistema educacional brasileiro. Ao defender uma escolaridade voltada à cidadania, à formação de sujeitos participativos e conscientes de sua dimensão social, a LDB trouxe ao centro do debate escolar a real possibilidade de reformulação das práticas pedagógicas vigentes até então.
No que diz respeito ao ensino de língua materna, essas reformulações ganharam ainda mais espaço com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais - Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental - Língua Portuguesa (PCNLP). Nesse documento, a linguagem ganha definitivamente uma nova visão de ensino, a qual muitos especialistas denominam
concepção sociointeracionista. Sob essa ótica, o ensino da língua materna desloca seu eixo dos aspectos gramaticais e normativos para o eixo da linguagem em uso:

... as propostas de transformação do ensino de Língua Portuguesa consolidaram-se em práticas de ensino em que tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada é o uso da linguagem. Pode-se dizer que hoje é praticamente consensual que as práticas devem partir do uso possível aos alunos para permitir a conquista de novas habilidades lingüísticas... (BRASIL, 1998, P. 18)

Nesse mesmo ângulo, Travaglia (2000) ressalta que o objetivo fundamental do ensino de língua materna deve, prioritariamente, pôr em prática a 1competência comunicativa dos usuários da língua - falante, escritor/ouvinte, leitor. Por sua vez, o desenvolvimento da competência comunicativa aponta à necessidade de promovermos, na sala de aula, o encontro dos alunos com a diversidade textual, expondo-os às várias situações de leitura e produção de textos. Na visão dos PCNLP, o objeto de ensino/aprendizagem passa a ser o conhecimento linguístico e discursivo

... com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem. Organizar situações de aprendizado, nessa perspectiva, supõe: planejar situações de interação nas quais esses conhecimentos sejam construídos e/ou tematizados; organizar atividades que procurem recriar na sala de aula situações enunciativas de outros espaços que não o escolar, considerando-se sua especificidade e a inevitável transposição didática que o conteúdo sofrerá; saber que a escola é um espaço de interação social onde práticas sociais de linguagem acontecem e se circunstanciam, assumindo características bastante específicas em função de sua finalidade: o ensino. (BRASIL, 1998, p. 22)

Destarte, estudar a língua como atividade social, meio de interação entre pessoas, em um determinado contexto, leva-nos ao campo dos gêneros e, consequentemente, aos conceitos trabalhados por Bakhtin. Nos PCNLP, os gêneros são entendidos como práticas sociais inseridas nas inúmeras situações linguisticamente significativas; eles auxiliam o educando a expandir sua capacidade de uso da linguagem, possibilitando-lhe um domínio cada vez maior de diferentes padrões de fala e de escrita. Por isso, a noção de gênero textual2 adotada pelo referido documento remete-nos diretamente a textos orais ou escritos que se concretizam em eventos comunicativos. São famílias de textos que “compartilham características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual se articula, tipo de suporte [livro, jornal, revista, fita, CD etc.] comunicativo, extensão, grau de literariedade (…) existindo em número quase ilimitado” (BRASIL, 1998, p. 22). De acordo com os PCNLP, a análise dos gêneros textuais não está limitada ao campo das características estruturais de determinados textos, ela alcança outros aspectos, principalmente os que estão relacionados às condições sociais de produção e recepção. Por isso, estudá-los é um meio para desenvolvermos a competência comunicativa, pois, à medida que ampliamos nosso repertório de gêneros tornamo-nos mais preparados para o enfrentamento das diversas situações comunicativas que surgem em nosso cotidiano.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para a conclusão do tema proposto neste artigo, terminaremos nossa reflexão buscando uma resposta para a questão levantada no início deste trabalho: os conceitos de polifonia, dialogismo e gênero estão presentes nas aulas de língua materna das escolas brasileiras? Se considerarmos que nas propostas curriculares em vigor os estudos sobre os fenômenos da linguagem orientam-se a partir de uma perspectiva social baseada na relação dialética indivíduo/sociedade, podemos dizer que a resposta é sim. Através da polifonia, do dialogismo e dos gêneros torna-se possível a observação da língua como um fenômeno heterogêneo e interativo, por isso, a maior contribuição que o estudo desses conceitos pode oferecer às aulas de língua materna está relacionada à construção dos sentidos do texto. Levando-se em conta que tal construção dá-se na interação de sujeitos, podemos inferir que as concepções bakhtinianas emergem como “ferramentas” muito úteis à compreensão textual.
No caso específico dos gêneros, o conhecimento dos elementos que os governam faz-se necessário por dois motivos: primeiro porque, conforme os PCNLP são considerados as bases de sustentação do ensino da língua materna; segundo, porque materializam a trocas interativas que ocorrem nas relações sociais - os gêneros demarcam as “identidades sociais” e as “posições do sujeito”, neles travam-se os diálogos dos “eus”, ecoam-se as “vozes” da sociedade. Para finalizar, verificamos que Bakhtin, ao defender uma língua viva e interativa, oferece-nos também a possibilidade de vislumbrarmos uma nova relação entre alunos e professores, uma relação em que a sala de aula não é vista apenas como um local de transmissão de conteúdos, mas como um palco de interação de sujeitos que buscam construir conhecimentos e significados através de intercâmbio e de experiências. Assim, podemos concluir que os três conceitos bakhtinianos abordados neste texto, mais que conteúdos acadêmicos, devem ser encarados como subsídios extremamente úteis ao desenvolvimento e ao aprimoramento das aulas de língua materna.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

BRASIL. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1988.

CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. 1998. São Paulo: Perspectiva, 1998.

FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: Brait, B. (Org.) Bakhtin conceitos-chave. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

FLORÊNCIO, Ana Maria Gama. O enunciado e a polifonia em Bakhtin. In Leitura: revista do programa de pós-graduação em letras e lingüística: número temático: discurso, história, sujeito e ideologia – n. 30 (jul./dez. 2002) – Maceió: Imprensa Universitária, UFAL, 2002.

FREITAS, M. T. A. Bakhtin e Vygotsky: um encontro possível. In: Brait, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. São Paulo: Unicamp, 1997.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2001.

MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: Brait, B. (Org.) Bakhtin conceitos-chave. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas/São Paulo: Mercado de Letras, 2004.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1° e 2° graus. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.


1 Para Travaglia, a competência comunicativa é a capacidade do usuário de empregar adequadamente a língua nas diversas situações de comunicação.


2 A utilização das expressões gênero textual e gênero do discurso pode variar de acordo com o contexto no qual são empregadas. Na teoria de Bakhtin, por exemplo, o emprego de gênero do discurso parece mais adequado em virtude de seus trabalhos estarem focados na situação de enunciação. Já a expressão gênero textual, referida nos PCNLP, caracteriza-se por uma ênfase nas formas composicionais.



Cristian Wagner de Souza - é professor com licenciatura em Letras – Habilitação: Português/Inglês e respectivas literaturas.

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