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domingo, 15 de abril de 2012

A LITERATURA E O ESTUDO DA SIGNIFICAÇÃO

 Cesar Augusto de Oliveira Casella

1. SEMÂNTICA


            Roberta Pires em seu texto[1][1] explica que definir o objeto de estudos da Semântica não é tarefa fácil. Basicamente, e simplificadamente, a Semântica busca descrever o significado das palavras e das sentenças; estuda e esmiúça o sentido no e do lingüístico. Partindo da problemática de se definir o termo significado, e levando em conta que o conceito de significação transborda as fronteiras da Lingüística, ela explicita a pluralidade da Semântica, e a sua conseqüente complexidade, ilustrando-a com a apresentação de três das formas de estudar o significado lingüístico: a Semântica Formal, a Semântica da Enunciação e a Semântica Cognitiva. Também Bréal[2][2], mesmo que de forma diversa e com objetivos totalmente diferentes, destaca claramente a dificuldade inerente ao estudo da linguagem e do sentido, escrevendo: “Não há duvida de que a linguagem designa as coisas de modo incompleto e inexato”. Ele aponta a polissemia, a restrição e a expansão do sentido como fenômenos da significação, e com estes fenômenos demonstra as desproporções entre as palavras e as coisas, e a inutilidade de se pensar e se ater a uma teorização única, rígida e imutável, na significação lingüística.
            As principais questões que se impõem e provocam a atenção no estudo da semântica envolvem a dificuldade de precisar a origem do sentido, a dificuldade de precisar o modo de produção do sentido, e qual o lugar preciso que a língua ocupa nesta produção de sentido. E logicamente são muitas as outras questões levantadas e reagrupadas em torno destas.



2. A ARBITRARIEDADE DO SIGNO


            Um dos primeiros e principais, chamemos assim, celeumas nos estudos de significação diz respeito à arbitrariedade do signo lingüístico. Em Saussure[3][3] encontramos como primeiro princípio da natureza do signo lingüístico a postulação: “O signo lingüístico é arbitrário”.
Simples e direto.
            Se procurarmos em um dicionário[4][4] a definição para arbitrário encontraremos: 1. Que independe de lei ou regra, e só resulta do arbítrio, ou mesmo do capricho de alguém. 2. Que não respeita leis ou regras, que não aceita restrições: despótico, discricionário. 3. Não necessário; eventual; facultativo. Das três definições provavelmente as duas primeiras nos interessam mais. E nelas encontramos um certo tom de incontornabilidade, de fatídica aceitação, de impositiva verdade. O signo independe de leis ou regras externas, e basta-se em seu arbítrio.
Aceitar ou não deste princípio saussuriano faz toda a diferença, pois a arbitrariedade do signo é o cerne de uma outra discussão: A relação da língua com o mundo é arbitraria ou motivada ? Para os estudos semânticos, e para os lingüistas e filósofos que deles se ocuparam, dentre estes Benveniste e Frege, esta passa a ser a questão.
            Se para Saussure o signo é arbitrário em relação ao significado, imotivado, não possuindo o signo nenhuma ligação natural com o significado, não contendo um elemento imposto de fora, bastando-se em si mesmo, para Benveniste[5][5] a arbitrariedade do signo não esta explicitada, só detectada, e é geralmente incontestada. Seria preciso reencontrar a estrutura do fenômeno e repô-la na teorização. Há, então, uma contradição entre a maneira como Saussure define o signo lingüístico e a natureza fundamental que ele mesmo lhe atribui. Para Benveniste, a contradição está na exclusão da realidade, da própria coisa, quando da definição do signo. Um terceiro termo implícito e não abarcado na definição inicial de Saussure. Assim, o laço significado/significante não é arbitrário, mas necessário, e a necessidade advém do próprio fato da língua ser um sistema, e aqui o cuidado é não se desprezar e nem se afastar das propostas saussurianas.
E repõe-se então a questão do arbitrário. A arbitrariedade está no fato que um signo se aplique a um determinado elemento da realidade. Escreve Benveniste: “O domínio do arbitrário fica relegado para fora da compreensão do signo lingüístico.” [6][6]
Para complementar a multiplicidade de visões e a complexidade do entendimento, Frege[7][7] se situa no campo da lógica e coloca as questões de significação em termos de relações de igualdade (A=A, B=B, A=B), e em termos de valor cognitivo. Apresenta-se uma nova ordem de conceitos, uma divisão clara entre sinal, sentido e referência, e as ligações destes com a representação. Entender uma relação como A=B requer exercícios mais substanciais de nosso conhecimento do que entender uma relação do tipo A=A. Trazendo a questão para a Lingüística, grosso modo, A e B seriam os sinais da língua e sua relação de igualdade só ocorreria se designassem ou denominassem a mesma coisa. A arbitrariedade coloca-se, agora, na conexão entre os sinais e a coisa designada. E entre signo e realidade se interpõe o modo de apresentação do objeto, o sentido.



3. LÍNGUA E MUNDO


            Derivando destes questionamentos sobre a arbitrariedade do signo surge um novo ponto de separação nas abordagens de estudos do significado lingüístico: Qual a relação entre língua e mundo ?
A língua é uma realidade original, imprevisível e irredutível a toda realidade extralingüística ? Dito de outro modo: O sistema lingüístico se basta em si mesmo ou não, ele faz parte de um sistema maior de significações ? Ou ainda: A significação se resolve no sistema lingüístico ou necessita do todo extralingüístico ?
            Saussure[8][8] está de todo convencido que a língua resolve os problemas de sentido. Pare ele a significação é significação lingüística pois a língua é o depositório das informações do mundo, e as conexões com o extralingüístico são matéria para as outras ciências, a fonologia pura ou a psicologia pura, por exemplo. A língua na visão saussuriana é a organizadora e intermediária de duas massas amorfas, o pensamento, massa indistinta, e o som, meio indeterminado. A língua é o domínio das articulações, das idéias que se fixam em um som e dos sons que se tornam o signo de uma idéia.
Benveniste tem sempre todo o cuidado de querer manter a estrutura do pensamento saussuriano, mas não pode deixar de tentar restaurar algumas pilastras. Também ele propõe que se afaste da Lingüística o problema metafísico da relação entre espírito e mundo, entre pensamento e realidade, pois esta não teria ainda condições de abordar o problema com sucesso. Mas aqui já se está admitindo a inclusão da exterioridade nos fenômenos da significação. Pelo menos na vida dos usuários da língua. Benveniste escreve: “Para o falante há, entre a língua e a realidade, adequação completa: o signo encobre e comanda a realidade; ele é essa realidade” [9][9].
             De algum modo a visão lógica de Frege também leva em conta a realidade e o mundo na sua formulação de sentido, mesmo que seja só ao se referir a representação associada ao sinal e a sua inerente subjetividade, onde o autor menciona um tesouro comum de pensamentos da humanidade, transmitido de uma geração para outra, que nos obriga a pensar em algo que não está na língua, que é necessariamente extralingüístico.



4. INCURSÕES LITERÁRIAS: GUIMARÃES ROSA


            Se levarmos em conta que as discussões sobre as relações entre língua e mundo, entre signo e coisa, sobre a significação e o sentido, feitas no âmbito da Lingüística tomam na maior parte das vezes como exemplos as ‘frases de laboratório’, palavras e frases feitas para se encaixarem nos postulados teóricos, ou então os ‘enunciados de fala’, que visam buscar a oralidade e a força de uso da língua, não poderíamos aumentar o espectro de estudo utilizando a literatura ?
É talvez singela e ingênua a pergunta, mas lá vai: literatura não é também conexão significadora entre língua e mundo ? Ou entre língua e pensamento ? Não há algo aqui que pode ser explorado pela Semântica ?
            Obviamente não se trata aqui de uma reflexão rigorosa ou de uma investigação filosófica. Apenas um questionamento de leitor. Se o léxico de Guimarães Rosa nos propõe divagações várias, sigamos as veredas. O que há em seus amalgamas de vocábulos que é arbitrário e de que expedientes se utiliza na formação de sentido ? É palavra sobre palavra, um circuito lúdico interno ao sistema lingüístico, ou é exteriorização de um mundo desconhecido e autoral por meio da linguagem ? Ou é a representação de um mundo regional e fantástico, mas real, por meio da literatura ficcional ?
            “Primeiras Estórias” [10][10] está repleto de exemplos destes amalgamas lexicais. Em ‘A menina de lá’ temos funebrilhos, os enfeites verdes brilhantes do caixãozinho cor-de-rosa de Nhinhinha. Em ‘Famigerado’ temos  mumumudos, adjetivo que caracteriza os três companheiros taciturnos de Damázio. Em ‘As Margens da Alegria’ temos circuntristeza, o entorno não alegre que o Menino vê e sente. Em ‘Pirlimpsiquice’ temos, além do próprio título, descrivivendo-as, o modo de recontar e atuar ao mesmo tempo de Zé Boné.         
            Se no conceito saussuriano de arbitrariedade há a formulação[11][11] de que o indivíduo por si só é incapaz de fixar um valor lingüístico que seja, sendo necessária sempre a coletividade para estabelecer o consenso, temos no mínimo um choque com a liberdade lexical de Guimarães Rosa. Além disto, como explicar que a leitura avance mesmo sem que saibamos muitos dos sentidos das palavras e das construções agramaticais do autor ?



5. INCURSÕES LITERÁRIAS: JUÓ BANANÉRE


            Se Guimarães Rosa nos mostra um mundo primordialmente literário, e se esta seria uma forma de desclassificar os exemplos por se referirem não a realidade do mundo, mas à ficção literária e lingüística, podemos tornar à carga com os imbróglios lexicais do pré-modernista Juó Bananére, de sua mistura macarrônica de português e italiano, suas paródias de poemas famosos e respeitáveis, e de seus claros objetivos de cronista de sua época, do homem que escreve em jornal, ou seja, de suas claras referências ao mundo extralingüístico e a realidade, para além da poesia e da literatura, da língua e do lingüístico.
            Termos[12][12] como sogramigna, galligna dangolla, povolada, insgugliambaçó, indisgraziado, otraveiz, e os nomes próprios Vapr’elli, Oxinton, Garonello, sentenças como Migna terra tê parmeras,/Che ganta inzima o sabiá onde se parodia Gonçalves Dias, ou Xiguê, xiguaste ! Vigna afatigada i triste/I triste e afatigada io vigna onde se parodia Olavo Bilac, tem em sua composição de sentido não só a sonoridade e a referência lingüística, não só signos, mas tem também, permeando, entrelaçando e enredando a significação, aspectos como o humor a sátira e a paródia, a história da política paulista do início do século XX, a imigração italiana, a mistura de duas línguas.
A busca pelo entendimento da significação, as questões de como se forma e de como se altera os sentidos do lingüístico, de alguma forma também se inserem na leitura literária, ainda que não sejam quaisquer leituras de quaisquer autores, e nos provocam a mais e mais reflexões. Ponto para a literatura, ponto para a Semântica.





BIBLIOGRAFIA


- “A Natureza do Signo Lingüístico (Cap. IV)” em “Problemas de Lingüística Geral”, Émile Benveniste (Companhia Editora Nacional e Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988)

- “Como os Nomes São Dados às Coisas” em “Ensaio de Semântica”, Michel Bréal (Educ e Pontes, São Paulo, 1992)

- “La Divina Increnca”, Juó Bananére (Reprodução integral da 1º edição de 1915 – Editora 34, São Paulo, 2001)

- “Natureza do Signo Lingüístico (Cap. I)” e “O Valor Lingüístico (Cap. IV)” em “Curso de Lingüística Geral”, Ferdinand de Saussure (Editora Cultrix, São Paulo, 9º edição)

- “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2º Edição, 1986).

- “Primeiras Estórias”, João Guimarães Rosa (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2001)

- “Semântica”, Roberta Pires de Oliveira (Fotocópia)

- “Sobre o Sentido e a Referência” em “Lógica e Filosofia da Linguagem”, Gottlob Frege (Editora Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1978)




[1][1] “Semântica”, Roberta Pires de Oliveira
[2][2] “Como os Nomes São Dados às Coisas” in “Ensaio de Semântica”, Michel Bréal
[3][3] “Natureza do Signo Lingüístico (Cap. I)” in “Curso de Lingüística Geral”, Ferdinand de Saussure
[4][4] “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
[5][5] “A Natureza do Signo Lingüístico (Cap. IV)” in “Problemas de Lingüística Geral”, Émile Benveniste
[6][6]  Idem
[7][7] “Sobre o Sentido e a Referência” in “Lógica e Filosofia da Linguagem”, Gottlob Frege
[8][8] “O Valor Lingüístico (Cap. IV)” in “Curso de Lingüística Geral”, Ferdinand de Saussure
[9][9] “A Natureza do Signo Lingüístico (Cap. IV)” in “Problemas de Lingüística Geral”, Émile Benveniste
[10][10] “Primeiras Estórias”, João Guimarães Rosa
[11][11] “O Valor Lingüístico (Cap. IV)” in “Curso de Lingüística Geral”, Ferdinand de Saussure
[12][12] “La Divina Increnca”, Juó Bananére


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