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terça-feira, 18 de setembro de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE LIBERDADE: DA PRÉ-MODERNIDADE, À MODERNIDADE EM CRISE

JIMENNA ROCHA CORDEIRO GUEDES
INTRODUÇÃO
Talvez não haja na história conceito tão estudado, debatido e tão pouco conclusivo, ou de conclusões tão amplas e diferenciadas como o da liberdade. Porém, através de uma revisão da literatura sobre o tema, o conceito parece ganhar contornos mais ou menos homogêneos quando analisados sobre o prisma de uma conjuntura histórica específica.
Ora, não seria a liberdade uma só? Um valor nato e inerente ao ser humano? Não nasce todo homem livre como reconhecem grande parte, ou todas, as cartas políticas atuais? Os diversos matizes que o conceito de liberdade apresenta na literatura e na história parece relativizar esta idéia e delimitá-la entre os contornos da chamada era Moderna e do pensamento moderno. Será, portanto, a liberdade uma construção calcada em paradigmas de uma época e do pensamento atinente a esta? 
O estudo buscará tratar a liberdade através da história, perscrutando seus alicerces no que convencionaremos chamar de liberdade pré-moderna (liberdade dos antigos e do medievo) bem como na Modernidade. Ainda, buscando arrematar o estudo da liberdade trazendo-o para os dias presentes, analisaremos a crise deste termo associada à crise da modernidade e ao início da chamada era pós-moderna.
 
1. A LIBERDADE ANTE OS PARADIGMAS DA ERA PRÉ-MODERNA
Para refletirmos sobre a diferença entre a liberdade dos modernos e às liberdades prévias a estes, essencial a remissão ao discurso de Benjamin Constant “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”. Em respeito à liberdade dos antigos, afirma Constant:
“Esta última consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar contas, os atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que consistia nisso o que os antigos chamavam de liberdade, eles admitiam, como compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo.” (1985, p. 11)
Conclui-se da passagem citada que para os antigos a liberdade era exercida através da política, isto é, através do exercício do direito coletivo da cidadania (PECORA, 2004, p. 8).  Os filósofos da antiguidade clássica não chegaram a relacionar liberdade com a noção subjetiva de voluntariedade individual nos atos dos seres humanos, “porque a liberdade antiga resulta da organização da comunidade política, o todo (a comunidade) é maior e mais relevante que a parte (o indivíduo).” (LAFER, 1997, pg. 17).
Obras de filósofos gregos como Platão e Aristóteles denotam que naquelas sociedades não se valorizava a individualidade para a auto-realização ou alcance da felicidade (eudaimonia)[1]. As verdades se manifestavam através do Estado e a busca pela felicidade se dava através dele e esse era o seu fim. Sábio era aquele que alcançava a compreensão de uma determinada verdade universal, isto é, da verdade do Estado, que refletia os modos das classes altas.
Os pensamentos dos romanos se afinavam com aqueles atinentes à liberdade grega, já que, para ambos ela significava igualdade política, o direito de participação e manejo de um sistema político (PATTERSON, 1993, p. 309-310). O pensamento romano à época se coadunava com aquela verdade universal e natural vista na Grécia, “la mentalidad romana de clase alta consideraba, naturalmente, que el modo romano era el modo de la razón” (PATTERSON, 1993, p. 365) criando um credo interior que estava em plena harmonia com o credo político da elite republicana de Roma.[2] É assim que a liberdade da antiguidade não passa por um projeto pessoal de auto-emancipação, mas como um projeto do Estado em busca do que nele se entende por felicidade. Como bem afirma Pecora, a existência individual é totalmente resolvida na existência política e em um mundo onde a política é tudo a liberdade que lhe interessa é a liberdade política (2004, p. 8).  Esta conclusão encontra guarida nas obras de Platão e a Aristóteles quando se enfatiza que o indivíduo não pode visar outro objetivo de vida se não o que lhe é oferecido como tal. (GIGON, 2003).
Vê-se, porém, que a liberdade dos romanos, mesmo que em princípio, similar a dos gregos sofreu modificações de acordo com seus períodos históricos e com a emancipação de seu império. CONSTANT enumera três razões preponderantes para o delineamento da compreensão de liberdade dos antigos: a) a pequena extensão das repúblicas antigas que permitia a efetiva participação ativa e constante do poder político; b) a guerra em contraposição ao comércio como meio de se possuir o que se deseja incitando o espírito de comunidade e de seu fortalecimento para a autodefesa, desembocando ainda na escravatura; c) a escravatura que permitia aos cidadãos antigos a deliberação efetiva em praça pública conjuntamente com a guerra já que esta permitia momento de ócio, posto que não era uma ocupação contínua como o trabalho (1985, p. 12-15). Estas três razões que influenciaram o delinear da concepção antiga de liberdade foram desaparecendo com o decorrer da história de Roma e com isto, o conceito de liberdade começou a passar por uma transformação.
O Império romano é um elo bastante importante para o salto da antiguidade para o medievo e para a compreensão do fenômeno do individualismo e da construção do conceito moderno de liberdade. A expansão territorial e a forma como esta influiu na questão da guerra, da escravidão (em grande escala) transformaram completamente a estrutura comunal tradicional da Itália romana (PATTERSON, 1993, p. 317).  O alargamento e manutenção do Império Romano através não só das guerras como da concessão aparentemente generosa da cidadania aos estrangeiros gerou um verdadeiro afrouxamento dos laços comunitários, repercutindo não só na impossibilidade de um exercício direto da liberdade cívica para a maioria dos romanos, bem como numa relativização do que é ser cidadão: ser cidadão efetivamente era ser etnicamente romano, isto é, pertencer à linhagem dos membros nativos, enquanto que para aqueles que eram descendentes de escravos não havia acesso à “democracia”. (PATTERSON, 1993, p. 318-320).
O impedimento de participação nos assuntos cívicos, bem como as concessões que o Império fazia a esses homens livres e não cidadãos, primeiramente quanto ao alargamento da cidadania, depois quanto a temas eminentemente econômicos, permitia mantê-los sem fome e entretidos. Esse distanciamento dos assuntos de Estado e esta liberdade de gerir suas vidas particulares afastaram a plebe do interesse pela democracia participativa, e mais, fez com que esta se apresentasse aos seus olhos como algo a ser temido, uma ameaça à sua segurança econômica[3]. O alheamento destes cidadãos foi o gérmen para o surgimento da aspiração por uma liberdade pessoal.
As mudanças sociais do Império Romano e o desmantelamento daquelas características citadas por Constant marcam o fim do que se entende por liberdade antiga e o início da fase de transição para a liberdade moderna. A característica mais marcante desta transição é o crescimento do sentimento individualista e seu atrelamento ao conceito de liberdade. A análise de Patterson da conjuntura do desenvolvimento do individualismo é ilustrativa:
“Esta extraordinaria realidad sociodemografica desenpeña um rol decisivo em la historia de la libertad. Porque por primera vez nos encontramos com uma sociedad em la cual la vasta mayoría de las personas libres estimaba el valor de la libertad personal em su sentido más literal: el de la liberación de la esclavitud”. (1993, p. 329)
Outro ponto relevante nesta nova mentalidade romana e nesta nova concepção de liberdade é a questão do cristianismo. O cristianismo reforçava esta idéia de liberdade individual como contraponto à escravidão. Segundo CARLYLE, referenciando Santo Ambrósio: “el cuerpo puede ser esclavizado, pero el alma es libre. El esclabo puede ser más libre que el amo; es el pecado lo que hace a um hombre ser verdaderamente esclabo.” (1982, p. 17), Todas as versões do cristianismo primitivo, também a  dominante de Paulo, se preocupavam com o valor da liberdade e o relacionavam com a liberdade individual, marcadamente em sua forma mais concreta: na liberação da escravidão (PATTERSON, 1993, p. 429).
 A difusão extraordinária do cristianismo como um dos pontos de modificação da mentalidade romana se justifica pela satisfação que esta religião trazia a certas necessidades básicas de cunho social, psicológico e espiritual a muitos dos povos do Império. (PATTERSON, 1993, p. 401), necessidades como as de salvação através da submissão apenas a Deus, o que desemboca na concepção de liberdade em contraposição à submissão ou escravidão aos homens, além da purificação de todos que se convertessem, mesmo os marginais e impuros do mundo, devido aos seus princípios universalistas e igualitários (PATTERSON, 1993, p. 421). É esta submissão de todos indistintamente a Deus que dota o cristianismo dos princípios de igualdade dos homens e, portanto, da sua liberdade natural (CARLYLE, 1982, p. 16).
Os cristãos ofereciam a liberdade como possibilidade de redenção eterna àqueles que vieram de uma história de escravidão e que estavam completamente dissociados da liberdade cívica. A liberdade cristã se mostrava como a única alternativa, além de, conforme Patterson:
“[...] um consuelo mientras esperamos y permite que la humanidad adquiera conciencia de esa libertad más alta – la libertad soberana de Dios, proxima y distante em el tuiempo y em el ser-. Apenas si se la puede captar, pero es posible gozarse em el mero conocimiento de su existência y proximidad [...] la humanidad deberá instalarse entonces, hasta la liberación final de la segunda venida, em la libertad de los gálatas y utilizarla como bandera em la lucha contra el reesclavizamiento y como impulso a la obediencia de uma fe superior que es la esperanza de la más alta libertad que se há garantizado y que significará, cuando llegue, no la rendición, sino la unión perfecta com Diós”. (1993, p. 465)
Foi este o pensamento do final da época Antiga, fruto das contradições internas do Império Romano que somadas às investidas dos povos bárbaros culminou com o fim daquele império e com o início de uma nova era: a Medieval.
Ao destacarmos o surgimento do individualismo através das concepções cristãs e o declínio da liberdade antiga pode parecer que a concepção da autoridade da comunidade havia desaparecido em definitivo e este não é o caso. O instituto da servidão se assemelhava muito ao da escravidão e esta ainda estava presente e de forma central na psicologia da classe proprietária e na de todos os homens humildes e pobres. O servo “se caracterizaba por los dos atributos propios del esclavo, la degradación y la impotencia” (PATTERSON, 1993, p. 484). A diferença que se estabeleceu entre a servidão e a escravidão era a de que, de fato, o cristianismo trouxe um espírito de fraternidade entre senhor e servo, fazendo com que este não fosse desprezado como o escravo, eles “eran ‘hermanos en cristo’, gozaban juntos de uma franquicia em el mundo real, tal como Cristo se las había concedido em el mundo espiritual;” (PATTERSON, 1993, p. 479). Ainda se podia dizer que o servo era um membro da comunidade e tinha direitos natais aos quais os senhores estavam dispostos a respeitar, porém não tinha poder sobre a sua pessoa já que era possuído por outra, tanto que poderia ser vendido. (PATTERSON, 1993, p. 482)
Não se pode ainda falar num individualismo que desemboque numa liberdade individual do servo, mas numa liberdade que se funda nas honrarias e no poder.  No inglês medieval, liberdade significava isenção, esta significava privilégio, “ser livre queria dizer ter acesso a direitos exclusivos – de uma corporação, de uma cidade, de um estado. Os que eram assim isentos e privilegiados entravam nas fileiras dos nobres e dos ilustres” (BAUMAN, 1989, p. 22).
 Havia sim certo reconhecimento da individualidade através dos preceitos cristãos, porém não a idéia de liberdade individual e universal moderna.  A tese de Carlyle de que já na Idade Média havia uma supremacia do direito, direito este que era o costume e que se fundava na comunidade e num direito natural provindo de Deus (1982, p. 31) deve ser vista com cuidado. Mesmo que a autoridade dos reis fosse limitada por certo consentimento da comunidade e das leis divinas, o reconhecimento da individualidade e, portanto, dos direitos individuais dos servos não se dava efetivamente já que estes não tinham o poder de autodeterminação. Resgatando os ensinamentos do Apóstolo Paulo, poderíamos falar que o servo era apenas indivíduo na relação com Deus (DUMONT, p.39). Segundo Bauman, no medievo, o controle e a ordem social era a regra dos senhores feudais ou das corporações locais ou ocupacionais, confiava-se sem saber e pensar nestes métodos e meios para seguir o seu modo de vida, a visão de uma pessoa independente gerava certa ansiedade, “a condição de não ter dono deve ter sido, sem dúvida, alarmante: em primeiro lugar por causa da dificuldade de a controlar e, em segundo, porque apresentava a ordem social como algo que deve ser conscientemente cuidado e que não se conserva por si própria” (1989, p. 55).  Definitivamente o homem não era auto-suficiente, auto-determinado, não se via completo em si mesmo, com o total domínio das circunstâncias da sua vida.
Esta mudança de comportamento começou a surgir com as constantes lutas travadas em busca desta liberdade que se confundia com privilégios, isto é, pela ampliação de privilégios frente ao rei. Em princípio esta liberdade era dada a uma categoria pequena de súditos ricos e poderosos, porém, a partir do século XII, este privilégio começou a ser concedido não só a indivíduos ou a linhagens familiares, mas a coletividades, particularmente a cidades. A emancipação destas cidades em relação aos poderes dos barões locais quebrou o elo mais importante entre riqueza e direitos sobre as pessoas (BAUMAN, 1989, p. 57-58). Neste sentido, Constant afirma que o comércio dá à propriedade a qualidade da circulação, e afirma que sem esta a propriedade não é mais que usufruto, já que pode sempre influir sobre ela, a circulação é um obstáculo que torna a propriedade invisível a ação do poder social, “Os efeitos do comércio estendem-se ainda mais longe; não somente ele emancipa os indivíduos, mas criando o crédito, torna a autoridade dependente” (1985, p. 22). O florescimento da vida urbana, a valorização do comércio e a quebra que este trouxe nas relações de dependência entre homem e terra foi a ponte definitiva para o individualismo, a racionalidade e a configuração da liberdade moderna.
2. A LIBERDADE ANTE OS PARADIGMAS DA MODERNIDADE E DE SUA CRISE
A noção de liberdade individual moderna já começa a se delimitar na Idade Média, como visto, com a ascensão do cristianismo, bem como com o embrião do que se chama hoje de “direito natural” com concepções como as de São Tomás de Aquino do homem titular de direitos natos, limitadores do exercício do poder de outros sobre si, derivados de sua própria racionalidade (SARLET, p. 44). A concepção jusnatural e contratualista influenciou bastante os principais pensadores da modernidade, principalmente aqueles que sedimentaram seus pilares, como Hobbes, Lock e Rousseau. Esta influência se fez sentir no papel do Estado da sociedade, fazendo com que ambos sejam forjados nos moldes das propriedades e qualidades inerentes indivíduo, considerado como ser autônomo e independente de todo e qualquer vínculo social e político (Dumont, 1985, p. 87). O jusnaturalismo traz o homem individual para o centro do mundo e o contratualismo alça a sua vontade à fonte criadora da sociedade, do Estado e do direito.
Como se denota, ser indivíduo moderno é dispor de certa margem de liberdade de agir e esta liberdade traz tensão com a comunidade (BAUMAN, 2001, p. 40). A pré-modernidade não traz o problema da liberdade nestes termos, já que não se podia falar em individualismo, tornando este problema irrelevante. Somente com a modernidade é que a análise da liberdade salta aos olhos, devido à sua contradição entre liberdade liberal e comunidade.
Também, um dos grandes pontos da Modernidade foi o seu sentido de propriedade, propriedade sem vínculos sociais, que permitiu maior autonomia de agir dos homens (pelo menos em aparência ou aos que a pertenciam).  A fusão entre liberdade individual e propriedade livre possibilitou a autodeterminação do homem, ser livre é, para o moderno, a independência na vida privada, seu objetivo é “a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios” (CONSTANT, 1985, p. 16). A comunhão entre liberdade individual e propriedade e a tensão destas com a comunidade apresentam-se como pontos chave da Idade Moderna.
Esta tensão foi captada por alguns pensadores que encampam a tese de que a Idade Moderna foi um projeto articulado em alguns paradigmas e que sua crise se dá pelo descumprimento das propostas destes paradigmas e das conseqüências nefastas que o tipo de racionalidade adotada naquela época culminou[4]. Destacaremos análise feita por Boaventura de Sousa Santos.
 Para Santos, a Modernidade se funda em um projeto sócio-cultural que se assenta em dois pilares fundamentais: o da regulação e o da emancipação. Cada um deles se constitui por três princípios. O pilar da regulação funda-se pelo princípio do Estado, principalmente atribuído a Hobbes; pelo princípio do mercado, visto em Locke; pelo princípio da comunidade que remonta à filosofia política de Rousseau. Já o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a ético-expressiva da arte e da literatura; a moral-prática da ética e do direito; a cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. (1999, p. 77)
O pilar da emancipação se relaciona à questão da racionalidade científica e auto-suficiente do homem. Agora o conhecimento se baseava no empirismo e a verdade era toda aquela que poderia ser verificada, num verdadeiro retorno à lógica cartesiana (COSTA, 2005, p. 3). Já o pilar da regulação coaduna-se com a crença de liberdade individual dos modernos, ser livre é, para eles, a independência na vida privada, seu objetivo é “a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios” (CONSTANT, 1985, p. 16). A sociedade moderna não acredita que possa estar em segurança sem tomar medidas de orientação e vigilância da conduta humana, isto é, sem medidas de controle social (BAUMAN, 1989, p. 23)
O princípio do Estado surge da necessidade de adequação à mudança da soberania medieval que emergia do apossamento da terra para o poder sobre o corpo e os seus atos, isto é, de um poder disciplinar (FERRAZ JR., 2009, p. 9). A necessidade de um poder soberano como algo que constitui a comunidade política e garanta as relações sociais explica a existência de um Estado. Hobbes percebeu esta necessidade e a expôs com genialidade na figura do Leviatã. O Leviatã era o elo que mantinha a liberdade individual na comunidade, tem o dever de zelar pela comodidade e segurança dos súditos, porém, tem o monopólio de ditar a ordem (FERRAZ JR., 2009, p. 10).
O princípio do mercado remonta àquela liberação do homem pelo comércio a partir da quebra de vínculo entre este e a propriedade. Podemos extrair do discurso de Benjamin Constant esse apego ao liberalismo de mercado, cujo pai é Locke, também como uma faceta da liberdade pessoal: “O comércio inspira aos homens um forte amor pela independência individual. O comércio atende a suas necessidades, satisfaz seus desejos, sem a intervenção da autoridade. Esta intervenção é quase sempre, e não sei por que digo quase, esta intervenção é sempre incômoda” (1985, p.14).
O princípio da comunidade, baseado em Rousseau, que é tomado como autoridade do corpo social pela liberdade de todos (CONSTANT, 1985, p. 17), ou uma comunidade concreta de cidadãos que baseavam a soberania do povo (SANTOS, 1999, p. 81), não tinha o sentido medieval de partir do todo social, mas partia primeiro do indivíduo que se punha em sociedade através de um contrato. Segundo Rousseau: "Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre o seu semelhante, e pois que a força não produz nenhum direito, restam, pois, as convenções como base de toda a autoridade legítima entre os homens” (ROUSSEAU, p. 15). O contratualismo coloca a vontade individual como o cerne, transformando o Estado, e conseqüentemente o direito, apenas no meio de consecução desta. 
Os princípios dos dois pilares da Modernidade articulam-se, visando maximizar as potencialidades de cada um deles, porém, embora as lógicas de emancipação racional visem, conjuntamente, orientar a vida prática das pessoas, cada uma delas se relaciona de modo privilegiado com algum pilar da regulação: a racionalidade estético-expressiva com o princípio da comunidade, em que as idéias de identidade e comunhão se condensam e se relacionam à contemplação estética; a racionalidade moral-prática com o princípio do Estado, pois a este compete definir e fazer cumprir um mínimo ético para o monopólio da produção e distribuição do direito; a racionalidade cognitivo-instrumental com o princípio do mercado, porque nele se condensam idéias de individualidade e concorrência, centrais ao desenvolvimento da técnica e pela conversão da ciência numa força produtiva. (SANTOS, 1999, p. 77). Santos afirma que a promessa mais dificultosa foi a de vincular o pilar da regulação ao pilar da emancipação de forma a concretizar e conciliar a vida coletiva e a individual (1999, p. 78).
Para Santos, o projeto da Modernidade constitui-se entre o século XVI e XVIII, mas só a partir do século XVIII é que se inicia o teste do cumprimento histórico das promessas do modelo e da racionalidade moderna, com a emergência do capitalismo enquanto modo de produção dominante nos países da Europa. O trajeto histórico da Modernidade está, pois, intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo (1999, p. 78-79). Santos distingue no capitalismo três grandes períodos: o do capitalismo liberal, vigente em todo século XIX; o do capitalismo organizado, do fim do século XIX até as primeiras décadas após a Segunda Guerra; o capitalismo desorganizado, chamado por alguns de capitalismo financeiro ou monopolista de Estado, que se situa desde o fim da década de sessenta até os dias atuais. (SANTOS, 1999, p. 79). O estudo destes períodos do capitalismo busca definir a trajetória do projeto sócio-cultural da modernidade, visando ainda demonstrar a atual crise dos paradigmas modernos que certamente influenciam a compreensão da liberdade.
No período do capitalismo liberal, observa-se que o projeto de desenvolvimento harmonioso entre os princípios do Estado, mercado e da comunidade colapsam diante do superdesenvolvimento do princípio do mercado, na atrofia do da comunidade e no desenvolvimento ambíguo do princípio do Estado devido à pressão desigual dos dois princípios anteriores. O desenvolvimento do mercado está patente conforme verificamos no crescimento vertiginoso da industrialização, das cidades industriais e comerciais, bem como pela supervalorização do laissez-faire como tradução da filosofia política liberal. Em contrapartida, a comunidade rousseauniana, de cidadãos concretamente dotados de soberania, foi reduzida a dois componentes abstratos: a sociedade civil, concebida como agregação competitiva de interesses particulares e relegada à esfera pública; o indivíduo, em tese livre e igual, visto como suporte básico da esfera privada e da sociedade civil, e, portanto, sobre esta tinha primazia. “Foi este conceito empobrecido de sociedade civil que passou a ser oposto ao Estado, dando assim origem ao que se considera ser o maior dualismo do pensamento político moderno, o dualismo Estado-sociedade civil” (SANTOS, 1999, p. 81).
Já expusemos a tese de Constant de que a intervenção estatal é sempre maléfica e que o Estado deve garantir (intervir) para que a iniciativa individual se desenvolva. Vê-se ai uma tese contraditória, já que coloca o Estado numa posição ambígua posto que o laissez-faire se concretiza, justamente, nas ações ou omissões (intervenções) estatais para configurar-se no Estado mínimo. (SANTOS, 1999, p. 81) Esta contradição aparece, inclusive, em seu discurso: “O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político.” (1985, p. 23).
Já no campo da razão (o pilar da emancipação), no domínio cognitivo-instrumental, viu-se um desenvolvimento espetacular da ciência e sua conversão gradual em força produtiva e, conseqüentemente, a sua vinculação ao mercado; no da moral-prática a autonomização e especialização manifestaram-se na elaboração e consolidação da “microética liberal” de responsabilidade moral exclusivamente referida ao indivíduo, além de manifestarem-se no formalismo jurídico extremo dos Pandectistas alemães, transformado em política jurídica hegemônica através da codificação, cuja expressão é o Code Civil napoleônico de 1804; no domínio ético-expressivo, a autonomização e especialização traduzem-se no crescente elitismo da cultura. (SANTOS, 1999, p. 82)
No segundo período, o do capitalismo organizado, procurou-se distinguir o que era possível e impossível de se realizar no projeto da modernidade dentro de um contexto capitalista (SANTOS, 1999, p. 83). Estas constatações relacionadas à lógica cartesiana da verificação e ao positivismo de Comte instauraram a crença de que o possível para o capitalismo era a única solução viável, gerando uma expansão contínua, no campo da regulação, do princípio do mercado. Em decorrência desta expansão, expandiu-se também o proletariado e houve uma verdadeira redefinição do princípio da comunidade através do alargamento do sufrágio universal (inscrito na lógica abstrata da sociedade civil e do cidadão formalmente livre e igual), a rematerialização da comunidade através das práticas e políticas de classe, através de sindicatos e associações patronais e da negociação coletiva. Já o Estado articulou-se cada vez mais com o mercado, através da regulamentação deste e da ligação dos aparelhos estatais aos grandes monopólios, na condução de guerras e de outras formas de controle imperialista, bem como na crescente intervenção na regulação e institucionalização dos conflitos entre capital e trabalho. A articulação estatal com a comunidade também se adensou, conforme o surgimento da legislação social, na gestão do espaço, do consumo, saúde, educação, enfim, na criação do Estado-providência. (SANTOS, 1999, p. 84-85)
O pilar da emancipação também sofreu influências deste processo de concentração do que era possível e exclusão do impossível para o capitalismo na consecução do projeto da modernidade. Assim, o pilar da emancipação tornou-se cada vez mais semelhante ao da regulação, num processo de convergência e interpenetração que Gramsci caracterizou através do conceito de hegemonia. Em relação à racionalidade moral-prática, o Estado penetrou mais profundamente na sociedade através de soluções legislativas, institucionais e burocráticas, fomentando assim a obediência passiva em substituição da mobilização ativa, consolidou-se também “uma ciência jurídica dogmática e formalista, pseudamente isenta de preferências axiológicas e políticas, lapidarmente formulada na teoria pura do direito de kelsen”. Esta racionalidade é tipicamente cognitivo-instrumental, visando um ethos científico ascético e autônomo culminando num “’esquecimento do ser’ heideggeriano”, remetendo a processos ditatoriais, “de policiamento despótico de fronteiras, da liquidação sumária de transgressões”, vide as experiências do fascismo e estalinismo. (SANTOS, 1999, p. 86)
O terceiro e atual período, chamado de capitalismo desorganizado, é visto como época em que a compreensão do descumprimento de muitos dos projetos da modernidade se avultou, gerando assim um processo de análise, crítica e revisão do mesmo, numa desestruturação dos paradigmas vigentes, uma fase de transição para, quem sabe, uma nova forma de organização (SANTOS, 1999, p. 87). Esta fase transitória, de desconstrução e incertezas é chamada de pós-modernidade.
No campo da regulação, o princípio do mercado ganhou pujança sem precedentes, extravasando o campo econômico e colonizando tanto o princípio do Estado, como o da comunidade, processo este possibilitado pelo credo neoliberal. Exemplos são o crescimento do mercado mundial com suas empresas multinacionais, transnacionalizando a economia e tornando o papel do Estado neste sentido como quase obsoleto; os mecanismos corporativos de regulação dos conflitos entre capital e trabalho, precarizando a relação salarial; a flexibilização e automação dos processos produtivos, permitindo a industrialização dependente do terceiro mundo... (SANTOS, 1999, p. 88). O princípio da comunidade parece se enfraquecer de novo, devido à estratificação cada vez maior e mais distinta das classes trabalhadoras e do aumento da classe de serviços, inviabilizando as organizações operárias e enfraquecendo seu poder negocial face ao capital e ao Estado; surgem novas práticas de mobilização social que se focam mais nas diferenças individuais e de formas de vida, como os movimentos sociais feministas, anti-racismo, bem como de reivindicações pós-materialistas como a ecologia e o pacifismo (SANTOS, 1999, p. 88).
Quanto ao pilar da emancipação, denotou-se um processo de esgotamento histórico com a crise global da idéia de revolução social e de sua domesticação em função das exigências cada vez mais profundas da regulação social. Ao nível da racionalidade cognitivo-instrumental “O compromisso industrial-militar do desenvolvimento científico-tecnológico e os perigos da proliferação nuclear e da catástrofe ecológica daí resultantes são sintomas bastantes do cumprimento excessivo e, portanto, irracional da racionalidade instrumental da modernidade.”. Esta “irracionalidade” da modernidade aliada às receitas neoliberais se transforma numa lógica de dominação e regulação em nível mundial, como demonstra o imperialismo norte-americano legitimado por esta lógica que via no modelo de desenvolvimento americano o modelo mais racional e que “oculta o facto decisivo de que quando este modelo foi seguido nos países centrais não havia que contar com os interesses hegemônicos de países mais desenvolvidos do que eles.” (SANTOS, 1999, p. 90). As conseqüências inevitáveis desta modernização científico-tecnológica e neoliberal vistas através do crescimento desenfreado da concentração de riqueza e da exclusão social são não só o agravamento das injustiças sociais, como também a devastação ecológica, comprometendo a qualidade a sustentabilidade da vida no planeta (SANTOS, 1999, p. 91).
Esta racionalidade cognitivo-instrumental interferiu com seus efeitos na racionalidade moral-prática que confinou-nos numa ética individualista, “uma microética que nos impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por acontecimentos globais, como a catástrofe nuclear ou ecológica, em que todos, mas ninguém individualizadamente parece poder ser responsabilizado” (SANTOS, 1999, p. 91). Estas conseqüências incontestáveis do modelo da modernidade demonstram a falha na execução do seu projeto e sua inadequação aos problemas dos tempos atuais. A liberdade individualista, a desfragmentação da comunidade, a visão utilitarista da vida e dos objetos, propiciada pela supervalorização do princípio do mercado, todos estes fatores construíram uma visão de liberdade como opção de escolha entre os bens de vida que o capitalismo nos oferecia, entre as opções relacionadas aos objetivos da atividade econômica. Os acontecimentos históricos e naturais da atualidade demonstram que esta lógica é autofágica, já que não podemos controlar seus resultados (que vem se demonstrando devastadores), tampouco saná-los, revertê-los ou atribuir-lhes responsabilidades, remetendo-nos à “sociedade de risco” de Ulrich Beck.
Este atrelamento do valor da liberdade ao modelo capitalista é muito bem expresso por Bauman, com base nos ensinamentos de Mike Emmison. Bauman explicita que o capitalismo é uma situação onde as funções de qualquer sociedade humana, designadamente a satisfação das suas necessidades através da troca com a natureza e com outras pessoas, são executadas pela aplicação de cálculos meios-fins à questão da escolha entre recursos escassos e limitados.  O capitalismo proporciona as condições para uma escolha “mais livre”, extirpando a atividade econômica de todas as outras instituições ou funções sociais, isto é: “a produção e distribuição estavam sujeitas a deveres de parentesco, a lealdades comunais, a solidariedades corporativas, rituais religiosos ou estratificação hierárquica dos padrões de vida” (1989, p. 73), assim, todas as normas extrínsecas se tornaram irrelevantes para o capital e houve a liberação da esfera econômica para a regra do calculo meios-fins e para o comportamento da livre escolha. “Mas a escolha e o cálculo meio-fins (nomeadamente o comportamento motivado, intencional e controlado pela razão) são as características essenciais e definidoras da liberdade conforme é entendida na sociedade moderna.” (1989, p. 73). É neste ponto que a liberdade se torna uma necessidade ao capitalismo, sem ela o objetivo da atividade econômica não pode ser cumprido, porém, estes objetivos realmente se assemelham com os da humanidade?
Este conceito de liberdade remete-se com exatidão à racionalidade de que tantos falamos, desprovida de qualquer carga valorativa, empiricamente demonstrável, utilitarista e que prega a lógica da maior eficiência, em que imiscuir outras considerações não relativas ao capital seria, neste ponto de vista, um meio menos eficiente, é esta racionalização, também denotada por Max Weber e por Simmel, que visa meios e fins, que acaba por instrumentalizar toda a vida humana , assim:
“O ser humano, nesse movimento de eliminação da ambivalência, foi tomado como objeto a ser moldado pela racionalidade científica e técnica, e também pela racionalidade legislativa. Assim como o mundo dos objetos manipulados pela ciência e pela técnica, a sociedade passou a ser tomada como objeto de manipulação técnica. A engenharia social foi a transformação do ser humano num meio racionalmente controlável. A humanidade foi tomada, durante a modernidade sólida, como objeto de controle, como instrumento ajustável aos fins do projeto moderno”.( MOCELLIM, 2007, p. 113)
Na análise histórica de Santos ficou patente que, dentre os princípios da modernidade, o da comunidade foi secundarizado, o do Estado posto à disposição do mercado e este desenvolveu-se ao extremo, tornando-se o fundamento da ordem social, política e econômica, adequando a racionalidade à utilidade da sua expansão. Porém pergunta-se em que se funda esta utilidade? O extremismo desta racionalidade nos trouxe experiências desastrosas. A racionalidade moral-prática da ética e do direito, ligada ao Estado, criou o nazi-facismo e nos conduziu ao extremo do positivismo normativo que permitiu o holocausto; a racionalidade cognitivo-instrumental relacionada mais especificamente ao mercado permitiu Chernobyl e a escassez, extinção e piora de vários recursos naturais; a racionalidade ético-expressiva permitiu a subjugação de culturas e o imperialismo... muitos são os fatores que nos levam a crer, conforme Santos, que as conseqüências do projeto da modernidade atreladas ao capitalismo foram mais acentuadamente um fator de regulação em favor do capital do que de emancipação do homem.
 
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
 Ao analisar-se historicamente o conceito de liberdade observa-se que seus contornos não se apresentam de forma imutável como um dogma a ser reverenciado, mas sim de forma fluída. Diante desta fluidez pode-se acusar a liberdade de ser um conceito vazio, que diante das conveniências ou circunstâncias “ser livre” pode chegar a vir a “ser escravo” e que na verdade o estudo em si não tem um objeto. Será então que um conceito construído através de paradigmas históricos, filosóficos sociológicos sempre poderão ser qualquer coisa? Ou seria, como disse Cecília Meireles, “a liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”?
A construção histórica do conceito de liberdade aqui apresentada não tem por ambição sustentar que este é um conceito vazio, que mude ao sabor de convenções ou imposições, tampouco refutar a tese de que a liberdade seja um valor natural, intrínseco ao ser humano. Refuta-se sim a idéia de liberdade calcada em um jus-naturalismo imutável e acrítico. A noção de direitos humanos e de liberdade aqui defendida constrói-se a partir das mudanças sociais, mas também se lastreia pelo fortalecimento e ampliação de valores e de ideais que reforcem uma existência humana digna e uma sociedade solidária.
O conceito de liberdade não é como os conceitos físicos, com qualidades definidas e estanques, é um conceito do campo dos valores. Os valores como o belo, o justo, o igual ou o livre não podem ser medidos por propriedades físicas ou unívocas, a tentativa de conhecer os valores previamente a partir de propriedades estanques sempre será frustrada por que o valor não é algo em si mesmo, mas é sim uma projeção sobre os objetos. As categorias estanques destes objetos não lhes podem ser aplicáveis. A liberdade, como todos os valores, podem sim ser reconhecida a partir de racionamentos, constatações, necessidades, conjunturas, fatos... a liberdade não pode ser vista como uma construção prévia de categorias imutáveis posto que se esvazie, mas deve ser reforçado com as variações deste tempo sempre no sentido de aumentar a autodeterminação da pessoa, sempre com o sentido de realçar suas características lógicas que fazem com que o conceito de liberdade surja com maior força frente às demandas e realidades mutáveis tanto do homem, como da sociedade e da história.
Os pré-modernos, diante da sua conjuntura, encaravam a liberdade como uma questão de titularidade: quem é livre? A história então foi resolvendo esta questão e a Modernidade trouxe a resposta da questão da titularidade da liberdade quando afirmou que todos têm o direito de ser livres, porém, diante desta panacéia universal que abriu aos homens horizontes tão vastos, a Modernidade não soube como cumprir a promessa da liberdade universal de fato para todos e absteve-se à mera declaração. Hoje as questões sobre a liberdade centram-se em uma pergunta: como ser livre?
A discussão não mais trata de valores básicos como de escravidão ou submissão explícita de um ser humano a outro, mas se põe de forma mais implícita e através de diversos melindres que a liberdade universal carrega, que pode levar a situações de escravidão de fato, ou pior, de total desvinculação social, em que até as responsabilidades dos senhores com os escravos poderia seria preferível. A questão da liberdade moderna não parece mais estar ligada às aptidões de alguns ou todos os seres humanos serem livres, mas de efetivação de potencialidades para o exercício dessa liberdade universal e virtual. Neste sentido, a mudança de paradigmas da liberdade não veio para esvaziar o conceito de liberdade, mas para reforçá-lo e os constantes esforços para compreendê-la, melhor delimitá-la e contextualizá-la não o invalidam, mas o fortalecem como valor universal, cuja responsabilidade de manutenção cabe à humanidade.
A análise dos pilares da modernidade buscou perscrutar o modelo de sociedade idealizado por esta, o cumprimento desse modelo, sua real face e seus déficits, para levantar sob que valores e parâmetros o moderno encara a liberdade, quais são seus desafios, o que se espera do “ser livre” e em que o projeto da modernidade falhou no seu exercício.
A crise da modernidade e a conseqüente contestação e descrença dos valores sociais servem de contexto para o grande debate sobre a natureza, a validade e o conteúdo da liberdade e de todos os demais valores. A discussão sobre valores não significa necessariamente seu esvaziamento, mas pode significar muito mais seu aperfeiçoamento. É neste momento que a liberdade deve ser discutida, já que é inegável ser um valor caro ao ser humano e à sociedade, pois esteve presente nas preocupações dos homes desde épocas imemoriais. A atual crise paradigmática que se convencionou chamar de pós-modernidade é uma oportunidade para que se discuta os contornos da liberdade nos parâmetros da sociedade atual e projeções para futuro. O momento é de oportunidade para a construção de bases para um novo modelo de sociedade. A informação, meditação e debate são elementos essenciais para que a liberdade seja efetivamente uma construção social e não mais sirva como estrutura para a manutenção do poder daqueles que efetivamente apresentam-se “mais livres”.
Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. A liberdade. Lisboa:Editorial Estampa, 1989.
__________________. Modernidade Líquida. 1ª ed. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2001.
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CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. in Filosofia política, Rio Grande do Sul, Número 2, 1985, pg. 09–25.
COSTA, Alexandre Araújo. Cartografia da racionalidade moderna. Sociedade e Diferença. Milovic, Miroslav; Sprandel, Maia; Costa, Alexandre Araújo; Nascimento, Wanderson Flor do (orgs.) Brasília: Casa das Musas, 2005.
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da sociedade moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993
GIGON, Olof. O conceito de liberdade no mundo antigo. Trad. PRADO, Anna Lia A. A.; BARROS, Gilda Naécia Maciel de in Notandum, Porto, v. 6, n. 10, p. 5-38, 2003.
FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito – reflexões sobre o poder, a loberdade, a justiça e o direito.. Ed. Atlas, São Paulo, 2009.
LAFER, Celso. O moderno e o antigo conceito de liberdade. Ensaios sobre a liberdade. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1980.
MOCELLIM, Alan. Simmel e Bauman: modernidade e individualização. in EmTese, Vol. 4 n. 1 (1), agosto-dezembro/2007, p. 101-118
PATTERSON, Orlando. La libertad – la libertad em la construcción de la cultura occidental. Santiago de Chile: Ed. Andrés Belo, 1993.
PECORA, Gaetano. La liberta dei moderni. Roma: Luiss University Press, 2004.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social.  Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/ ~wfil/ contrato.pdf
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Ed. Cortez, 1995.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
 
Notas:
 
[1] A filosofia do Estado de Platão e de Aristóteles defendeu a tese de que é dever do Estado cuidar da eudaimonia dos cidadãos. Ele precisa adotar as medidas e criar instituições que possibilitem ao indivíduo alcançar o fim que lhe foi estabelecido pela natureza. Assim o Estado torna-se o educador e, já que o comportamento do homem a partir da infância, em todas as esferas da vida, pode influir favorável ou desfavoravelmente em sua aspiração à eudaimonia, o resultado é que o Estado tem o direito de, orientando e regulamentando, intervir em toda esfera da vida. Percebemos claramente o quanto isto é inquietante. Em Platão, na República e ainda mais nas Leis, e também em Aristóteles, a legislação organiza literalmente todas as relações da vida, desde a geração da criança, passando pelo cuidado com o lactente, a instrução dos jovens, chegando até as ocupações da velhice. Sob esse ponto de vista, também é prescrito aos poetas o que devem criar e, aos professores, que disciplinas devem lecionar. Quase não sobra um espaço no qual o indivíduo possa mover-se livremente. São conhecidas de todos as censuras que, nos tempos modernos e mais recentemente, a partir disso, têm sido levantadas contra a construção platônica do Estado. (GIGON, 2003)
 
[2] “El sabio, que vive conforme a la naturaleza, reconciliaba lo divino que había en el con lo divino del cosmos. De este modo era libre, ya que su conformidad con el cosmos era exactamente lo que él mismo, ejerciendo la razón, habría deseado.” (PATTERSON, 1993, p. 365).
 
[3] Después de la horrible experiencia de la república tardia, (os plebeus) concluyeron que la libertad cívica, tal como la praticaba la clase gobernante, era una obvia amenaza a la libertad personal que tanto estimaban. El trato implícito que efectuaron con Augusto y los emperadores seguientes fue la aceptación de la version orgánica de la libertad soberana, que proclamaban los emperadores, a cambio del apoyo imperial de la libertad personal y de la seguridad. (PATTERSON, 1991, p. 322)
 
[4] Dentre destes autores podemos citar Bauman, que dividia a história em: pré-modernidade (modernidade sólida) época do vigor da idéia do projeto moderno, isto é: de controle do mundo pela razão no intuito de tornar o mundo melhor através do ordenamento racional e técnico a partir de dois elementos de destaque, o Estado e a ciência; em pós-modernidade (modernidade líquida) caracterizada pela liquidez e mobilidade das relações e no exarcebamento da individualidade (MOCELLIN, 2007, p.104-105). Ainda podemos citar o pensamento de Hannah Arendt, que pauta a era moderna em três grandes marcos: a descoberta da América que possibilitou exploração de toda a Terra; a Reforma que, desencadeou a expropriação das propriedades eclesiásticas e monásticas, e o duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza social; a invenção do telescópio que propiciou o desenvolvimento da ciência sob uma perspectiva que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo. (ARENDT, 2007, p. 260).

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