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segunda-feira, 16 de julho de 2012

O CONCEITO DE LÍNGUA: UM CONTRAPONTO ENTRE A GRAMÁTICA NORMATIVA E A LINGUÍSTICA



1. Introdução
A possibilidade humana de se comunicar, de interagir no nível das idéias, só é possível com a aquisição desta ferramenta abstrata que é a língua. Se até hoje persistem dúvidas para conceituá-la de uma forma “correta”, ou mesmo sobre o que permite sua assimilação, sua utilização e ainda questões como por que existem tantas concepções de língua, podemos ter noção da complexidade da temática. Assim, para compreender por que a conceituação de língua não é consensual, propomos a construção de um caminho, buscando compreender como diferentes perspectivas teóricas abordam a questão da língua. Faremos isso a partir do viés da Gramática Normativa e da Lingüística, tratando, em especial, das abordagens de Saussure e Chomsky. A partir disso, buscaremos também compreender a noção de língua na perspectiva teórica da Análise do Discurso.
Este percurso faz-se necessário para pensarmos nas implicações que surgem a partir dessas diferentes abordagens. Pensar a língua significa pensar também nos processos de fala e de escrita, enfim, pensar a linguagem em seu uso. A maneira com que estas vertentes teóricas tratam a língua implicará a maneira como elas percebem esses processos, para os quais a língua é fundamental. Assim, justifica-se o interesse em compreender as distintas noções de língua.

2. De que língua trata a Gramática Normativa?
Começamos este percurso teórico a partir de 1952, com os estudos de Napoleão Mendes de Almeida, publicados na Gramática metódica da língua portuguesa. A essa época a gramática estava em sua sexta edição. Trinta e seis edições depois, em 1999, a definição de língua permanecia a mesma na gramática do autor: “Conquanto constitua a linguagem dom comum de todos os homens, nem todos eles se comunicam pelas mesmas palavras. O conjunto de palavras, ou melhor, a linguagem própria de um povo chama-se língua ou idioma” (op. cit, 1999, p. 17). Podemos perceber que o autor define a língua quando se dedica a conceituar o que é a linguagem, e assim diferencia os dois termos. A noção de língua parece então emergir apenas nos aspectos que a diferem da linguagem. Esse processo se repete em inúmeras outras gramáticas.
É esse o caso de Cunha e Cintra (1985), que também conceituam a língua diferenciando-a da linguagem. Em um capítulo específico dessa gramática, estabelecem uma distinção entre linguagem, língua e discurso. Assim, a postura teórica é próxima daquela que nos trazia Mendes de Almeida. Para Cunha e Cintra, a língua é um “sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Meio através do qual uma coletividade se expressa, concebe o mundo e age sobre ele. É a utilização social da faculdade da linguagem” (op. cit, p.1). Outro ponto importante na gramática de Cunha e Cintra é que, embora na primeira definição de língua eles a tratem como um “sistema gramatical”, a seguir, referem-se à língua como um conjunto de sistemas lingüísticos, ou diassistema[1].
Contrapondo-se a esta visão de conjunto de sistemas, Rocha Lima (2003), apresenta uma noção de língua como um sistema único: “[A língua] é um sistema: um conjunto organizado e opositivo de relações, adotado por determinada sociedade para permitir o exercício da linguagem entre os homens” (op. cit., p.5). Se há aí uma diferença conceitual em relação à abordagem teórica de Cunha e Cintra, essa diferença é relativizada ao percebermos que Rocha Lima demonstra estar de acordo com as definições desses autores, e ainda com a de Mendes de Almeida, considerando a língua como um fator que permite a realização da linguagem. Quanto ao fato de tratar-se de um “sistema”, é importante destacar que Rocha Lima trata a língua como um instrumento de comunicação geral, aceito pelos membros de uma coletividade. Ele ainda pontua que há uma dicotomia entre o que chama de diferenciação e unificação da língua, já que, embora cada indivíduo apresente um estilo (a seleção por ele feita a partir dos recursos da língua), a língua não se desfigura, não perde suas características gerais.
Bechara (2001), quando se dedica a conceituar língua, trata de duas possibilidades: a língua histórica e a língua funcional. Assim, a língua seria um produto histórico e, ao mesmo tempo, uma unidade idealizada, devido à impossibilidade de alcançar, na realidade, uma língua que se quer homogênea, unitária.
Esse autor também considera que a língua nunca é um sistema único, mas um conjunto de sistemas, que encerra em si várias tradições. Uma mesma língua apresenta diferenças internas: no espaço geográfico, no nível sócio cultural e no estilo ou aspecto expressivo. Nesse sentido, Bechara utiliza uma abordagem muito próxima àquela utilizada por Cunha e Cintra, quando esses autores se referem à língua como um diassistema. Importante destacar que, para Bechara, um língua nunca está plenamente pronta, mas se faz continuamente, devido à atividade lingüística.
Assim, podemos perceber que, para os gramáticos, a língua é tida como um sistema, ou conjunto de sistemas. A preocupação em defini-la não é uma constante: muitas gramáticas não fazem sequer menção a uma conceituação de língua. Nas gramáticas em que esta conceituação está presente, na maioria das vezes, ela surge como um recurso para diferençar a língua da linguagem, e nesse caso, o foco dos gramáticos é a linguagem e não a língua. Curiosamente, as regras a que se dedicam os gramáticos estão no nível da língua.
Na Lingüística, a língua vai ocupar uma outra posição, diferente daquela da gramática. A língua é tida como um sistema de signos lingüísticos que pode ser considerada um fato social, embora este não seja da ordem do histórico social, e sim pelo fato de envolver a massa de falantes. A Lingüística Moderna desenvolveu essa e outras premissas a partir dos estudos de Ferdinand de Saussure, aos quais recorremos a seguir.
3. A definição de língua em Saussure
Quando Saussure inaugura a Lingüística Moderna, no início do século XX, conhecida a partir da publicação do Curso de lingüística geral, provavelmente o aspecto mais importante de seu estudo inovador seja justamente a definição da língua como objeto da Lingüística. Saussure afirma que a lingüística é constituída por todas as manifestações da linguagem humana, mas faz uma diferenciação importante dentro da própria linguagem. Para ele, a linguagem tem duas partes: a língua, considerada essencial, e a fala, tida como secundária. Poderíamos falar dessa distinção nos termos langue e parole, ambos introduzidos por Saussure. O primeiro termo, em traços gerais, refere-se à língua como sistema de signos interiorizado culturalmente pelos sujeitos falantes, ao passo que parole (fala) se refere ao ato individual de escolha das palavras para a enunciação do que se deseja.
Saussure ainda diferenciou os aspectos evolutivos, históricos da língua, a que denominou diacrônicos; e o estudo dos estados de língua, da relação entre os elementos simultâneos, a que denominou sincrônicos.
Para o autor, a faculdade de constituir uma língua seria natural ao homem, embora seja ela própria uma convenção (Saussure, 1970, p.18). Para Saussure, a língua é um sistema de signos lingüísticos, no qual, “de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica, e onde as duas partes do signo são igualmente psíquicas” (op. cit, p.23).
A assimilação da língua pelos grupos sociais é explicada pelo autor:
A língua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos. Trata-se, pois, de algo que está em cada um deles, embora seja comum a todos e independe da vontade dos depositários (op. cit, p.27).
Considerando essas afirmações, é possível entender porque Saussure afirma que os sujeitos, individualmente, não podem criar uma língua, ou mesmo modificar uma já existente. A língua é um fato social. “Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (op. cit, p. 22).
É certo que Saussure inaugurou uma nova forma de pensar a língua e, com isso, concedeuà Lingüística o estatuto de cientificidade. Mas a partir de seus estudos, surgiram muitos outros, que, com diferentes abordagens e recortes teóricos, foram desenvolvendo os estudos na área. Chomsky é um dos autores que, embora faça parte da mesma vertente teórica que Saussure (estruturalismo), apresenta uma nova teoria, a Gramática Gerativa, com a qual propõe pensar maneiras através das quais os indivíduos formulam as sentenças.
4. A definição de língua em Chomsky
Os estudos de Chomsky nos indicam que os seres humanos apresentam uma predisposição genética que permite a aquisição da linguagem. Assim, ele utiliza o termo “estado inicial” para caracterizar o que seria um dispositivo de aquisição da língua (Chomsky, 1998).
Ora, se todos os seres humanos estão aptos a adquirirem uma língua, a experiência vivida pelos sujeitosseria um “dado de entrada” no sistema (permitindo a assimilação de palavras e seus significados) e a língua propriamente dita, um “dado de saída”. Assim, para Chomsky, “cada língua em particular é uma manifestação específica do estado inicial uniforme” (op. cit. p. 24).
Perini (1985), numa introdução ao estudo do gerativismo, afirma que, para os gerativistas, a língua é tida como “um conjunto de sentenças, sendo cada uma delas formada por uma cadeia de elementos (palavras e morfemas)” (op. cit, p.16). Em outras palavras, Chomsky considera que o sujeito que dominar um conjunto finito de regras será capaz de produzir um número infinito de sentenças.
A teoria que abarca os estudos chomskyanos é o gerativismo. Gerativismo porque propõe o uso de uma gramática gerativa, relacionada com as possibilidades de cada língua de gerar expressões. Assim, para Lyons(1981), os gerativistas estão interessados no que as línguas têm em comum, o que representa um retorno à antiga tradição da gramática universal. Ainda para este autor, o “coração” do gerativismo está na distinção entre competência e desempenho.
Perini (1985) nos traz uma explicação bastante didática para o termo desempenho: “O uso que fazemos da língua, resultado desse complexo de fatores lingüísticos e extralingüísticos se denomina desempenho. [...] O desempenho é, afinal, aquilo que efetivamente realizamos quando falamos (ou quando ouvimos, ou escrevemos ou lemos)” (op. cit, p. 27).
competência, afirma o autor, trata-se de um “conjunto de normas internalizadas, ou regras, que nos permite emitir, receber e julgar enunciados de nossa língua” (op. cit, p.27).
Embora os conceitos de desempenho e competência de Chomsky se assemelhem aos conceitos de langue e parole de Saussure, para Lyons, há uma distinção fundamental entre eles. O que Lyons apresenta de comum entre esses conceitos cunhados pelos dois autores é que ambos separam o que é lingüístico do que não é. Para o autor recém citado, Saussure apresenta uma tendência mais psicológica do que Chomsky. Além disso, conforme Lyons, a questão principal é que na definição dos dois conceitos de Saussure não existe nada que trate sobre as regras para gerar sentenças, o que é fundamental em Chomsky, e explícito no seu sistema de competência e desempenho.
Se comparássemos a langue de Saussure com a competência de Chomsky, a diferença fundamental é que a langue trata de um sistema interiorizado, e a competência, embora trate também de um sistema interiorizado, trata não dos signos internalizados, mas das regras para gerar os enunciados da língua. Nas palavras do próprio Chomsky (1978), a distinção entre competência e desempenho realmente está relacionada com a distinção langue-parole de Saussure, mas, segundo ele, “é necessário rejeitar o seu conceito de langue como sendo meramente um inventário sistemático de itens e regressar antes à concepção Humboldtiana de competência subjacente como um sistema de processos generativos” (op. cit, p. 84).
É aí que reside a principal diferença conceitual entre os dois autores. Para Saussure, a língua, de forma generalizada, é um sistema de signos, e para Chomsky, um conjunto de sentenças. A partir dos estudos desses dois importantes autores no campo na Lingüística, partiremos para o estudo de dicionários de lingüística para analisarmos como a Lingüística contemporânea conceitua a língua.
5. A abordagem de dicionários de Lingüística sobre a noção de língua
A Lingüística atualmente engloba os conceitos cunhados por Saussure, principalmente, mas também os de Chomsky. Assim, é comum encontrarmos referência a esses autores nos modernos dicionários de Lingüística, quando se referem às concepções/noções de língua.
O Dicionário de lingüística e fonética, de Crystal (1988) caracteriza vários conceitos para o termo língua. Cita inicialmente o ato concreto de fala como um dos sentidos que a língua tem, em seu nível mais específico. Talvez porque o livro seja traduzido do inglês (em que language significa tanto língua como linguagem), muitas vezes, após a palavra língua, há, entre parênteses a palavra linguagem, indicando a dupla possibilidade de definição. O texto aponta para o fato de que variedades da língua também podem receber essa denominação, como no exemplo de “língua científica” (aqui poderia haver a substituição por linguagem).
O autor registra que o sentido para o termo língua dado em expressões como “língua-mãe”, ou “língua inglesa”, é o de um sistema abstrato de signos lingüísticos subjacente à fala/escrita usadas coletivamente por uma comunidade, e então se refere à noção de langue, de Saussure. Mas também afirma que o sentido para língua pode ser o conhecimento deste sistema por um indivíduo, e então nos remete à noção de competência, de Chomsky (op. cit, p.159).
Já Dubois et. al. (1993) inicialmente concebe a língua como um instrumento de comunicação, um sistema de signos específicos aos membros de uma mesma comunidade. O Dicionário de Lingüística em questão refere-se a termos como língua materna, línguas vivas, línguas mortas, e a distinção entre língua escrita e língua falada, sendo consideradas cada uma como um sistema singular dentro da própria língua.
Saussure é uma referência importante para a definição de língua apresentada pelos autores, tendo assim, seus conceitos de língua, fala e linguagem explicitados. Os autores referem-se à língua como aspecto social, e à fala como ato individual. Da soma de ambas, teríamos a linguagem. O sistema de signos a que Saussure denomina língua é também destacado, como um sistema cujas partes devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica (op. cit, p. 380). Saussure é também retomado quando os autores explicam que as palavras só significam pela diferença de valores em relação às outras palavras.
Os estudos saussurianos das relações sintagmáticas são abordados, como a maneira de organizar os elementos da língua, com as possíveis variações de combinações e escolha de palavras. Lembramos aqui que, para os estruturalistas, “a língua é um complexo de estruturas de naturezas diferentes” (op. cit, p. 382).
Retomando os sintagmas de Saussure, os autores concluem: “A língua é, portanto, um sistema de signos cujo funcionamento repousa sobre um certo número de regras, de coerções. É, portanto, um código que permite estabelecer uma comunicação entre um emissor e um receptor” (op. cit, p. 383).
Apesar de os autores conceberem a língua como um sistema de signos, conforme a abordagem de Saussure, Chomsky também é retomado no dicionário, sendo que os autores aproximam seu conceito de competência ao de língua, e o de desempenho ao de fala. Assim, reafirma-se a importância de Saussure para a definição de língua desse dicionário, já que os conceitos chomskyanos são reduzidos à comparação com os conceitos de Saussure.
A partir das definições já mencionadas, os autores trazem ainda um conceito para língua em que se reconhece a pluralidade de línguas e dialetos. Há aqui o esclarecimento de que
a noção de língua é uma noção prática introduzida bem antes que a lingüística se constituísse; o termo foi empregado com valores tão diversos pelos lingüistas e não-especialistas, que ninguém está de acordo com uma definição, que seria, entretanto, essencial estabelecer com precisão (op. cit, p. 384).
Assim, admitindo-se a não existência de uma definição clara para a noção de língua, os autores discutem a relação das línguas vigentes com as instituições, as maneiras que fazem com que um dialeto ou uma língua prevaleça sobre outro(a).
Diferentes noções de língua são apresentadas no Dicionário de linguagem e lingüística de R.L. Trask (2004), tais como: “língua artificial, língua de sinais, língua do imigrante, língua franca, língua minoritária, língua morta etc., além de relações como língua e etnicidade, língua e identidade, língua e ideologia, língua e poder” dentre outras.
O autor trata da língua como objeto central do estudo em Lingüística, na mesma perspectiva de Saussure, o que também observamos nos dicionários já citados. Distingue língua específica e língua em geral, destacando que muitos lingüistas acreditam que as várias línguas possuem propriedades comuns.
São citados os estudos de Chomsky, relativos à análise exaustiva de poucas línguas para identificar princípios abstratos, o que, como indica Trask (op. cit.), é criticado por outros lingüistas, que consideram essa abordagem estreita e enganadora. O autor resgata os conceitos de lange e parole de Saussure, e de competência e performance (desempenho) de Chomsky. É possível notar que a descrição de língua de Trask (op. cit.) é muito mais voltada às técnicas e definições dos lingüistas, do que à descrição da língua em si.
Desta maneira, com base nas definições de língua encontradas nos três dicionários estudados, entendemos que os conceitos de Chomsky e de Saussure nos levam a compreender a língua como um sistema de signos lingüísticos, e também como o conhecimento deste sistema pelos indivíduos, em sua capacidade de gerar sentenças. Outras abordagens lingüísticas, contudo, introduzem aspectos não considerados pelos autores até aqui citados, e passam a pensar a língua em atos concretos de fala, isto é, na realização da interlocução humana, sendo que a própria língua se constitui como o instrumento fundamental para que esse processo ocorra.
6. Do sistema da língua ao funcionamento do discurso
No percurso teórico que percorremos, foi possível perceber como o conceito/noção de língua varia de acordo com a perspectiva teórica em questão. Na Gramática Tradicional, observamos uma visão delimitada, “fechada”, que considera a língua como um sistema de regras que permite a realização da linguagem.
Saussure problematizou a questão e transformou a língua no objeto de estudo da Lingüística, dando a esta o estatuto de ciência, tal foi a importância de seus estudos.
Chomsky, seguindo a mesma perspectiva de Saussure, inicia os estudos que fundam o campo do gerativismo, introduzindo uma abordagem voltada para a criatividade humana, para a capacidade de gerar/criar sentenças.
Alguns seguidores da Lingüística Moderna, embora também numa perspectiva estruturalista, introduzem novas questões para pensar a língua, concebendo-a como um instrumento de comunicação, ou como um código que permite que se estabeleça a comunicação humana. Isso justifica a afirmação de Dubois (1993), no sentido de que não há uma definição de língua com a qual todos estejam de acordo. O mesmo autor escreve que seria essencial estabelecer uma definição comum, para avançar nos estudos lingüísticos.
Podemos pensar, no entanto, afastando-nos do que defende esse autor, que a pluralidade de concepções de língua permite, dentre outras coisas, que aceitemos a diversidade de pontos de vista, bem como de concepções das noções de fala, de escrita, de comunicação, dentre outras.
É justamente a partir de distintas vertentes teóricas, cada uma com sua importância, que hoje podemos pensar a língua como o “lugar” em que se configura a materialidade do discurso, conforme os estudos desenvolvidos em Análise do Discurso (AD).
Se a língua, através das abordagens visitadas nesse texto, é concebida como um sistema, a AD vai apresentar uma perspectiva diferenciada. Não se trata, no entanto, de negar a idéia de sistema, mas de compreender que a língua é a base material para que o discurso ocorra, como afirma Pêcheux (1988, p.91), ou seja, para que tratemos do uso e do funcionamento da língua.
Conforme Cazarin (2005), o discurso “não é a língua nem a fala de Saussure, mas situa-se entre elas, em um lugar particular, porém social” (p. 230). Essa autora salienta que Saussure apresenta a língua como um fato social, mas social no sentido de compartilhada por todos os membros de uma comunidade lingüística. Diferentemente, a AD trata o aspecto social da língua quando a considera a partir de uma perspectiva histórico-social. O sujeito que enuncia não o faz simplesmente como um ato individual; o lugar do sujeito é o lugar de um sujeito histórico, que enuncia a partir de uma posição-sujeito, e afetado pelo inconsciente e pela ideologia. Esta é a ruptura introduzida pela AD: uma língua que perpassa a condição de sistema para ser uma língua que é a base do discurso, e que por isso apresenta também espaço para o impossível, para o “indizível” na estrutura. É o que os analistas do discurso chamam de “real da língua”, ou seja, “o furo, o lapso, o equívoco ocorrem e são apreendidos na e pela língua – o real da língua é a língua como ela funciona em situações de uso, e não na sua abstração” (op. cit. p. 231). A introdução da perspectiva da AD desloca o “lugar” e a importância da língua na realização de processos discursivos, quer na sua abordagem escrita, quer em outros processos de interlocução.

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