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domingo, 4 de março de 2012

DAS NUANCES DA LITERATURA E SUAS MALDIÇÕES

por Alessandro Garcia

Edgar Allan Poe estabelece que a gênese do bom conto deve partir de um efeito único a ser atingido e assim ir acomodando os acontecimentos de forma a satisfazê-lo, insistindo na regularidade e eficiência que deverão manter a atenção do leitor e de um único eixo dramático, não permitindo intervenções, comentários e descrições quando desnecessários. Ele visa a um objetivo único, imutável, caminha em direção a uma luz sem propósitos de alterações que possam vir a confundir o leitor a respeito da proposta inicial do autor. Poe estabelece uma situação inicial e a partir dela trabalha de forma concentrada situações capazes de criar o suspense no leitor conduzindo-o até o clímax. Para Poe, isto é o necessário para o escritor do conto atingir seus objetivos.
Já Julio Cortázar, no ensaio Alguns aspectos do conto [publicado no livro "Valise de Cronópio"], nos diz que os contos de Tchekov visam apresentar algo que está além do conto em si, tanto antes como depois. Muito além do fato narrado, escondem-se outros fatores que devem ser destrinchados pelo leitor. Utilizando como exemplo o conto “O bilhete de loteria”, onde a tensão está concentrada em Ivan Dmitritchi e sua esposa que imaginam terem ganho o prêmio da loteria. Durante o conto a ação é praticamente nula, apenas com os dois se observando e imaginando o que fazer com o dinheiro, porém quando certificam-se de que não ganharam nada, voltam-se para a realidade. Não há nada além disso se pensarmos de acordo com a teoria de Poe, mas de acordo com o pensamento de Cortázar sobre a obra de Tchekov as coisas se passariam de modo diferente. O que seria, então, esta outra intenção?
Existem subterfúgios diversos, possibilidades mil de se esconder as diversas nuances existentes em um conto. Ou de contá-las da maneira mais fascinante possível, deixando ao leitor o intrincado jogo de revelação sobre o que de fato ele representa. Em uma palestra para escritores cubanos da Revolução, Cortázar discorreu sobre sua maneira de olhar para o conto. Para ele, a função de um conto é quebrar seus próprios limites para ir muito além da pequena história que narra. E neste quesito, a escolha do tema se torna imprescindível como ato de criação. Cortázar defende que o tema deve ser uma condição primordial para o contista esmiuçar sua história de maneira aglutinante e mais vasta que um mero argumento. E para isto, é necessário uma total dedicação e motivação com o assunto a ser retratado, caso contrário, o conto já nasce completamente comprometido. Dedicação, conhecimento – o esmiuçar do tema escolhido, procurando retirar do conto, desde a sua proposta de escrita, todos os diferentes ângulos de análise possível ou apresentar um, deixando para o leitor as possibilidades interpretativas de todos os outros existentes.
E isto vai além de toda a verborragia que perpassa uma produção literária que hoje tem insistido mais nas digressões e no vomitar vazio de palavras, do que no esmiuçar destas diversas possibilidades que Cortázar nos apresenta. A atual safra de contos que tem se apresentado, principalmente através das revistas eletrônicas tão vastas na net, têm apresentado, quase sem novas ousadias, o apego as características dos escritores “malditos”. Não à toa, as suas referência esbarram quase que inevitavelmente em John Fante, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Alan Ginsberg, entre outros. Sobre o primeiro, acho peculiar que também sempre esteja inserido no rol da “maldição”. Sua obra prima, Pergunte ao Pó, tão aclamada por Charles Bukowski, apesar de contar com fluxos de memória freqüentes, narração em primeira pessoa e com uma temática comum nestas obras — a busca de sentido pelo personagem título que vaga insone, com pouco dinheiro e intercalando diversas aventuras mundanas pelas noites de alguma grande cidade — a meu ver não pode ser simplesmente comparada com obras como a de seu próprio “discípulo” Bukowski e suas insanas e toscas aventuras repletas de gratuita imersão na quase pornografia e constante embriaguez de seus personagens alter-egos.
Alguns jornalistas e críticos, interessados em fazer um mapa atualizado sobre quem são os escritores da dita nova geração que têm se prestado a perpetuar tal espécime de “categoria literária”, se assim se pode chamar, têm, no entanto, ensacado todos os escritores estreantes como cópias mal disfarçadas uns dos outros.
É notória, no entanto, a constatação de um tipo de literatura atual que, se não totalmente fundamentada nos alicerces da geração dos malditos, têm apresentado elementos que os equiparem em algum ponto a esta literatura evidentemente provocativa de então. Lógico que a literatura como provocação é uma atitude louvável quando não calcada em experimentações já desgastadas e em formas fáceis. O apelo para o estranhamento, como se buscou outrora, deve buscar ao menos o novo para se fazer original e não caricatura de um estilo que, mais do que discriminado como foi na sua primeira geração, hoje tem se convertido em status, grife identificadora. Desta maneira, quem não quer ser maldito?

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