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quinta-feira, 21 de julho de 2011

OS LUSÍADAS - CANTO II - LUÍS DE CAMÕES

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Canto II


Já neste tempo o lúcido Planeta
Que as horas vai do dia distinguindo,


Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo;
E da casa marítima secreta he estava o Deus
Nocturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram.

Dantre eles um, que traz encomendado
O mortífero engano, assi dizia:
«Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino e salsa via,
O Rei que manda esta Ilha, alvoraçado
Da vinda tua, tem tanta alegria
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te e do necessário reformar-te.

«E porque está em extremo desejoso
De te ver, como cousa nomeada,
Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra, tu com toda armada;
E porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente débil e cansada,
Diz que na terra podes reformá-la,
Que a natureza obriga a desejá-la.


«E se buscando vás mercadoria
Que produze o aurífero levante,
Canela, cravo, ardente especiaria
Ou droga salutífera e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rígido diamante,
Daqui levarás tudo tão sobejo
Com que faças o fim a teu desejo.»

Ao mensageiro o Capitão responde,
As palavras do Rei agradecendo,
E diz que, porque o Sol no mar se esconde,
Não entra pera dentro, obedecendo;
Porém que, como a luz mostrar por onde
Vá sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá sem receio seu mandado,
Que a mais por tal senhor está obrigado.

Pergunta-lhe despois se estão na terra
Cristãos, como o piloto lhe dizia;
O mensageiro astuto, que não erra,
Lhe diz que a mais da gente em Cristo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra
Toda a suspeita e cauta fantasia;
Por onde o Capitão seguramente
Se fia da infiel e falsa gente.

E de alguns que trazia, condenados
Por culpas e por feitos vergonhosos,
Por que pudessem ser aventurados
Em casos desta sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes, ensaiados,
Por que notem dos Mouros enganosos
A cidade e poder, e por que vejam
Os Cristãos, que só tanto ver desejam.


E por estes ao Rei presentes manda,
Por que a boa vontade que mostrava
Tenha firme, segura, limpa e branda,
A qual bem ao contrário em tudo estava.
Já a companhia pérfida e nefanda
Das naus se despedia e o mar cortava:
Foram com gestos ledos e fingidos
Os dous da frota em terra recebidos.

E despois que ao Rei apresentaram
Co recado os presentes que traziam,
A cidade correram, e notaram
Muito menos daquilo que queriam;
Que os Mouros cautelosos se guardaram
De lhe mostrarem tudo o que pediam;
Que onde reina a malícia, está o receio
Que a faz imaginar no peito alheio.

Mas aquele que sempre a mocidade
Tem no rosto perpétua, e foi nascido
De duas mães, que urdia a falsidade
Por ver o navegante destruído,
Estava nüa casa da cidade,
Com rosto humano e hábito fingido,
Mostrando-se Cristão, e fabricava
Um altar sumptuoso que adorava.

Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha, debuxada
Sobre a única Fénix, virgem pura;
A companhia santa está pintada,
Dos doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.


Aqui os dous companheiros, conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o Mundo governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
Na Pancaia odorífera, queimava
O Tioneu, e assi por derradeiro
O falso Deus adora o verdadeiro.

Aqui foram de noite agasalhados,
Com todo o bom e honesto tratamento
Os dous Cristãos, não vendo que enganados
Os tinha o falso e santo fingimento
Mas, assi como os raios espalhados
Do Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu no rúbido Horizonte
Na moça de Titão a roxa fronte,

Tornam da terra os Mouros co recado
Do Rei pera que entrassem, e consigo
Os dous que o Capitão tinha mandado,
A quem se o Rei mostrou sincero amigo;
E sendo o Português certificado
De não haver receio de perigo
E que gente de Cristo em terra havia,
Dentro no salso rio entrar queria.

Dizem-lhe os que mandou que em terra viram
Sacras aras e sacerdote santo;
Que ali se agasalharam e dormiram
Enquanto a luz cobriu o escuro manto;
E que no Rei e gentes não sentiram
Senão contentamento e gosto tanto
Que não podia certo haver suspeita
Nüa mostra tão clara e tão perfeita.


Co isto o nobre Gama recebia
Alegremente os Mouros que subiam
Que levemente um ânimo se fia
De mostras que tão certas pareciam.
A nau da gente pérfida se enchia,
Deixando a bordo os barcos que traziam.
Alegres vinham todos porque crêm
Que a presa desejada certa têm.

Na terra cautamente aparelhavam
Armas e munições, que, como vissem
Que no rio os navios ancoravam,
Neles ousadamente se subissem;
E nesta treïção determinavam
Que os de Luso de todo destruíssem,
E que, incautos, pagassem deste jeito
O mal que em Moçambique tinham feito.

As âncoras tenaces vão levando,
Com a náutica grita costumada;
Da proa as velas sós ao vento dando,
Inclinam pera a barra abalizada.
Mas a linda Ericina, que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a cilada grande e tão secreta,
Voa do Céu ao mar como üa seta.

Convoca as alvas filhas de Nereu,
Com toda a mais cerúlea companhia,
Que, porque no salgado mar nasceu,
Das águas o poder lhe obedecia;
E, propondo-lhe a causa a que deceu,
Com todos juntamente se partia
Pera estorvar que a armada não chegasse
Aonde pera sempre se acabasse.


Já na água erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas branca escuma;
Cloto co peito corta e atravessa
Com mais furor o mar do que costuma;
Salta Nise, Nerine se arremessa
Por cima da água crespa em força suma;
Abrem caminho as ondas encurvadas,
De temor das Nereidas apressadas.

Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,
Vai a linda Dione furiosa;
Não sente quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão fermosa.
Já chegam perto donde o vento teso
Enche as velas da frota belicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse instante
As naus ligeiras, que iam por diante.

Põe-se a Deusa com outras em direito
Da proa capitaina, e ali fechando
O caminho da barra, estão de jeito
Que em vão assopra o vento, a vela inchando:
Põem no madeiro duro o brando peito
Pera detrás a forte nau forçando;
Outras em derredor levando-a estavam
E da barra inimiga a desviavam.

Quais pera a cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande acomodado
As forças exercitam, de inimigas
Do inimigo Inverno congelado;
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali mostram vigor nunca esperado:
Tais andavam as Ninfas estorvando
À gente Portuguesa o fim nefando.


Torna pera detrás a nau, forçada,
Apesar dos que leva, que, gritando,
Mareiam velas; ferve a gente irada,
O leme a um bordo e a outro atravessando;
O mestre astuto em vão da popa brada,
Vendo como diante ameaçando
Os estava um marítimo penedo,
Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.

A celeuma medonha se alevanta
No rudo marinheiro que trabalha;
O grande estrondo a Maura gente espanta,
Como se vissem hórrida batalha;
Não sabem a razão de fúria tanta,
Não sabem nesta pressa quem lhe valha:
Cuidam que seus enganos são sabidos
E que hão-de ser por isso aqui punidos.

Ei-los subitamente se lançavam
A seus batéis veloces que traziam;
Outros em cima o mar alevantavam
Saltando n'água, a nado se acolhiam;
De um bordo e doutro súbito saltavam,
Que o medo os compelia do que viam;
Que antes querem ao mar aventurar-se
Que nas mãos inimigas entregar-se.

Assi como em selvática alagoa
As rãs, no tempo antigo Lícia gente,
Se sentem porventura vir pessoa,
Estando fora da água incautamente,
Daqui e dali saltando (o charco soa),
Por fugir do perigo que se sente,
E, acolhendo-se ao couto que conhecem,
Sós as cabeças na água lhe aparecem:


Assi fogem os Mouros; e o piloto,
Que ao perigo grande as naus guiara,
Crendo que seu engano estava noto,
Também foge, saltando na água amara
Mas, por não darem no penedo imoto,
Onde percam a vida doce e cara,
A âncora solta logo a capitaina,
Qualquer das outras junto dela amaina.

Vendo o Gama, atentado, a estranheza
Dos Mouros, não cuidada, e juntamente
O piloto fugir-lhe com presteza,
Entende o que ordenava a bruta gente,
E vendo, sem contraste e sem braveza
Dos ventos ou das águas sem corrente.
Que a nau passar avante não podia,
Havendo-o por milagre, assi dizia:

«Ó caso grande, estranho e não cuidado!
Ó milagre claríssimo e evidente,
Ó descoberto engano inopinado,
Ó pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo, sàbiamente,
Se lá de cima a Guarda Soberana
Não acudir à fraca força humana?

«Bem nos mostra a Divina Providência
Destes portos a pouca segurança,
Bem claro temos visto na aparência
Que era enganada a nossa confiança;
Mas pois saber humano nem prudência
Enganos tão fingidos não alcança,
Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado
De quem sem ti não pode ser guardado!


«E, se te move tanto a piedade
Desta mísera gente peregrina,
Que, só por tua altíssima bondade,
Da gente a salvas pérfida e malina,
Nalgum porto seguro de verdade
Conduzir-nos já agora determina,
Ou nos amostra a terra que buscamos,
Pois só por teu serviço navegamos.»

Ouviu-lhe estas palavras piadosas
A fermosa Dione e, comovida,
Dantre as Ninfas se vai, que saüdosas
Ficaram desta súbita partida.
Ja penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera recebida
Avante passa, e lá no sexto Céu,
Pera onde estava o Padre, se moveu.

E, como ia afrontada do caminho,
Tão fermosa no gesto se mostrava
Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho
E tudo quanto a via, namorava.
Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
Uns espíritos vivos inspirava,
Com que os Pólos gelados acendia,
E tornava do Fogo a Esfera, fria.

E, por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e cara,
Se lh'apresenta assi como ao Troiano,
Na selva Ideia, já se apresentara.
Se a vira o caçador que o vulto humano
Perdeu, vendo Diana na água clara,
Nunca os famintos galgos o mataram,
Que primeiro desejos o acabaram.


Os crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo colo que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Minino as almas acendia.
Polas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

Cum delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pera que o desejo acenda e dobre,
L'he põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

E mostrando no angélico sembrante
Co riso üa tristeza misturada,
Como dama que foi do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se aqueixa e se ri num mesmo instante
E se torna entre alegre, magoada,
Destarte a Deusa a quem nenhüa iguala,
Mais mimosa que triste ao Padre fala:

«Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,
Que, pera as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afábil e amoroso,
Posto que a algum contrairo lhe pesasse;
Mas, pois que contra mi te vejo iroso,
Sem que to merecesse nem te errasse,
Faça-se como Baco determina;
Assentarei, enfim, que fui mofina.

«Este povo, que é meu, por quem derramo.
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
Sendo tu tanto contra meu desejo;
Por ele a ti rogando, choro e bramo,
E contra minha dita enfim pelejo.
Ora pois, porque o amo é mal tratado;
Quero-lhe querer mal, será guardado.

«Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,
Que pois eu fui.» E nisto, de mimosa,
O rosto banha em lágrimas ardentes,
Como co orvalho fica a fresca rosa.
Calada um pouco, como se entre os dentes
Lhe impedira a fala piedosa,
Torna a segui-la; e indo por diante,
Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

E destas brandas mostras comovido,
Que moveram de um tigre o peito duro,
Co vulto alegre, qual, do Céu subido,
Torna sereno e claro o ar escuro,
As lágrimas lhe alimpa e, acendido,
Na face a beija e abraça o colo puro;
De modo que dali, se só se achara,
Outro novo Cupido se gerara

E, co seu apertando o rosto amado,
Que os saluços e lágrimas aumenta,
Como minino da ama castigado,
Que quem no afaga o choro lhe acrecenta,
Por lhe pôr em sossego o peito irado,
Muitos casos futuros lhe apresenta.
Dos Fados as entranhas revolvendo,
Desta maneira enfim lhe está dizendo:


- «Fermosa filha minha, não temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos,
Nem que ninguém comigo possa mais
Que esses chorosos olhos soberanos;
Que eu vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se Gregos e Romanos,
Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de fazer nas partes do Oriente.

«Que, se o facundo Ulisses escapou
De ser na Ogígia Ilha eterno escravo,
E se Antenor os seios penetrou
Ilíricos e a fonte de Timavo,
E se o piadoso Eneias navegou
De Cila e de Caríbdis o mar bravo,
Os vossos, mores cousas atentando,
Novos mundos ao mundo irão mostrando.

«Fortalezas, cidades e altos muros
Por eles vereis, filha, edificados;
Os Turcos belacíssimos e duros
Deles sempre vereis desbaratados;
Os Reis da Índia, livres e seguros,
Vereis ao Rei potente sojugados,
E por eles, de tudo enfim senhores,
Serão dadas na terra leis milhores.


«Vereis este que agora, pressuroso,
Por tantos medos o Indo vai buscando,
Tremer dele Neptuno de medroso,
Sem vento suas águas encrespando.
Ó caso nunca visto e milagroso,
Que trema e ferva o mar, em calma estando!
Ó gente forte e de altos pensamentos,
Que também dela hão medo os Elementos!

«Vereis a terra que a água lhe tolhia,
Que inda há-de ser um porto mui decente,
Em que vão descansar da longa via
As naus que navegarem do Ocidente
Toda esta costa, enfim, que agora urdia
O mortífero engano, obediente
Lhe pagará tributos, conhecendo
Não poder resistir ao Luso horrendo.

«E vereis o Mar Roxo, tão famoso,
Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;
Vereis de Ormuz o Reino poderoso
Duas vezes tomado e sojugado.
Ali vereis o Mouro furioso
De suas mesmas setas traspassado;
Que quem vai contra os vossos, claro veja
Que, se resiste, contra si peleja.

«Vereis a inexpugnábil Dio forte
Que dous cercos terá, dos vossos sendo;
Ali se mostrará seu preço e sorte,
Feitos de armas grandíssimos fazendo.
Envejoso vereis o grão Mavorte
Do peito Lusitano, fero e horrendo;
Do Mouro ali verão que a voz extrema do falso.
Mahamede ao Céu blasfema.

Goa vereis aos Mouros ser tomada,
O qual virá despois a ser senhora
De todo o Oriente, e sublimada
Cos triunfos da gente vencedora.
Ali, soberba, altiva e exalçada,
Ao Gentio que os Ídolos adora
Duro freio porá, e a toda a terra
Que cuidar de fazer aos vossos guerra.


«Vereis a fortaleza sustentar-se
De Cananor, com pouca força e gente;
E vereis Calecu desbaratar-se,
Cidade populosa e tão potente;
E vereis em Cochim assinalar-se
Tanto um peito soberbo e insolente
Que cítara jamais cantou vitória
Que assi mereça eterno nome e glória.

«Nunca com Marte instruto e furioso
Se viu ferver Leucate, quando Augusto
Nas civis Áctias guerras, animoso,
O Capitão venceu Romano injusto,
Que dos povos de Aurora e do famoso
Nilo e do Bactra Cítico e robusto
A vitória trazia e presa rica,
Preso da Egípcia linda e não pudica,

«Como vereis o mar fervendo aceso
Cos incêndios dos vossos, pelejando,
Levando o Idololatra e o Mouro preso,
De nações diferentes triunfando;
E, sujeita a rica Áurea Quersoneso,
Até o longico China navegando
E as Ilhas mais remotas do Oriente,
Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.

«De modo, filha minha, que de jeito
Amostrarão esforço mais que humano,
Que nunca se verá tão forte peito,
Do Gangético mar ao Gaditano,
Nem das Boreais ondas ao Estreito
Que mostrou o agravado Lusitano,
Posto que em todo o mundo, de afrontados,
Re[s]sucitassem todos os passados.»


Como isto disse, manda o consagrado
Filho de Maia à Terra, por que tenha
Um pacífico porto e sossegado,
Pera onde sem receio a frota venha;
E, pera que em Mombaça, aventurado,
O forte Capitão se não detenha,
Lhe manda mais que em sonhos lhe mostrasse
A terra onde quieto repousasse.

Já pelo ar o Cileneu voava;
Com as asas nos pés à Terra dece;
Sua vara fatal na mão levava,
Com que os olhos cansados adormece;
Com esta, as tristes almas revocava
Do Inferno, e o vento lhe obedece;
Na cabeça o galero costumado;
E destarte a Melinde foi chegado.

Consigo a Fama leva, por que diga
Do Lusitano o preço grande e raro,
Que o nome ilustre a um certo amor obriga,
E faz, a quem o tem, amado e caro.
Destarte vai fazendo a gente, amiga,
Co rumor famosíssimo e perclaro.
Já Melinde em desejos arde todo
De ver da gente forte o gesto e modo.

Dali pera Mombaça logo parte,
Aonde as naus estavam temerosas,
Pera que à gente mande que se aparte
Da barra imiga e terras suspeitosas;
Porque mui pouco val esforço e arte
Contra infernais vontades enganosas;
Pouco val coração, astúcia e siso,
Se lá dos Céus não vem celeste aviso.


Meio caminho a noite tinha andado,
E as Estrelas no Céu, co a luz alheia,
Tinham largo Mundo alumiado,
E só co sono a gente se recreia.
O Capitão ilustre, já cansado
De vigiar a noite que arreceia,
Breve repouso antão aos olhos dava,
A outra gente a quartos vigiava;

Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,
Dizendo: - «fuge, fuge, Lusitano,
Da cilada que o Rei malvado tece,
Por te trazer ao fim e extremo dano!
Fuge, que o vento e o Céu te favorece;
Sereno o tempo tens e o Oceano,
E outro Rei mais amigo, noutra parte,
Onde podes seguro agasalhar-te!

«Não tens aqui senão aparelhado
O hospício que o cru Diomedes dava,
Fazendo ser manjar acostumado
De cavalos a gente que hospedava;
As aras de Busíris infamado,
Onde os hóspedes tristes imolava,
Terás certas aqui, se muito esperas:
Fuge das gentes pérfidas e feras!

- «Vai-te ao longo da costa discorrendo
E outra terra acharás de mais verdade
Lá quási junto donde o Sol, ardendo,
Iguala o dia e noite em quantidade;
Ali tua frota alegre recebendo,
Um Rei, com muitas obras de amizade,
Gasalhado seguro te daria
E, pera a Índia, certa e sábia guia.»


Isto Mercúrio disse, e o sono leva
Ao Capitão, que, com mui grande espanto,
Acorda e vê ferida a escura treva
De üa súbita luz e raio santo;
E vendo claro quanto lhe releva
Não se deter na terra inica tanto,
Com novo esprito ao mestre seu mandava
Que as velas desse ao vento que assoprava.

- «Dai velas (disse) dai ao largo vento,
Que o Céu nos favorece e Deus o manda;
Que um mensageiro vi do claro Assento,
Que só em favor de nossos passos anda.»
Alevanta-se nisto o movimento
Dos marinheiros, de üa e de outra banda;
Levam gritando as âncoras acima,
Mostrando a ruda força que se estima.

Neste tempo que as ancoras levavam,
Na sombra escura os Mouros escondidos
Mansamente as amarras lhe cortavam,
Por serem, dando à costa, destruídos;
Mas com vista de linces vigiavam
Os Portugueses, sempre apercebidos;
Eles, como acordados os sentiram,
Voando, e não remando, lhe fugiram.

Mas já as agudas proas apartando
Iam as vias húmidas de argento;
Assopra-lhe galerno o vento e brando,
Com suave e seguro movimento.
Nos perigos passados vão falando,
Que mal se perderão do pensamento
Os casos grandes, donde em tanto aperto
A vida em salvo escapa por acerto.


Tinha üa volta dado o Sol ardente
E noutra começava, quando viram
No longe dous navios, brandamente
Cos ventos navegando, que respiram.
Porque haviam de ser da Maura gente,
Pera eles arribando, as velas viram.
Um, de temor do mal que arreceava,
Por se salvar a gente à costa dava.

Não é o outro que fica tão manhoso,
Mas nas mãos vai cair do Lusitano,
Sem o rigor de Marte furioso.
E sem a fúria horrenda de Vulcano;
Que, como fosse débil e medroso.
Da pouca gente o fraco peito humano,
Não teve resistência; e, se a tivera,
Mais dano, resistindo, recebera.

E como o Gama muito desejasse
Piloto pera a Índia, que buscava,
Cuidou que entre estes Mouros o tomasse,
Mas não lhe sucedeu como cuidava;
Que nenhum deles há que lhe ensinasse
A que parte dos céus a Índia estava;
Porém dizem-lhe todos que tem perto
Melinde, onde acharão piloto certo.

Louvam do Rei os Mouros a bondade,
Condição liberal, sincero peito,
Magnificência grande e humanidade,
Com partes de grandíssimo respeito.
O Capitão o assela por verdade,
Porque já lho dissera deste jeito
O Cileneu em sonhos; e partia
Pera onde o sonho e o Mouro lhe dizia.


Era no tempo alegre, quando entrava
No roubador de Europa a luz Febeia,
Quando um e o outro corno lhe aquentava,
E Flora derramava o de Amalteia;
A memória do dia renovava
O pres[s]uroso Sol, que o Céu rodeia,
Em que Aquele a quem tudo está sujeito
O selo pôs a quanto tinha feito;

Quando chegava a frota àquela parte
Onde o Reino Melinde já se via,
De toldos adornada e leda de arte
Que bem mostra estimar o Santo dia.
Treme a bandeira, voa o estandarte,
A cor purpúrea ao longe aparecia;
Soam os atambores e pandeiros;
E assi entravam ledos e guerreiros.

Enche-se toda a praia Melindana
Da gente que vem ver a leda armada,
Gente mais verdadeira e mais humana
Que toda a doutra terra atrás deixada.
Surge diante a frota Lusitana,
Pega no fundo a âncora pesada;
Mandam fora um dos Mouros que tomaram,
Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

O Rei, que já sabia da nobreza
Que tanto os Portugueses engrandece,
Tomarem o seu porto tanto preza
Quanto a gente fortíssima merece;
E com verdadeiro ânimo e pureza,
Que os peitos generosos ennobrece,
Lhe manda rogar muito que saíssem
Pera que de seus reinos se servissem.


São oferecimentos verdadeiros
E palavras sinceras, não dobradas,
As que o Rei manda aos nobres cavaleiros
Que tanto mar e terras têm passadas.
Manda-lhe mais lanígeros carneiros
E galinhas domésticas cevadas,
Com as frutas que antão na terra havia;
E a vontade à dádiva excedia.

Recebe o Capitão alegremente
O mensageiro ledo e seu recado;
E logo manda ao Rei outro presente,
Que de longe trazia aparelhado:
Escarlata purpúrea, cor ardente,
O ramoso coral, fino e prezado,
Que debaxo das águas mole crece,
E, como é fora delas, se endurece.

Manda mais um, na prática elegante,
Que co Rei nobre as pazes concertasse
E que de não sair, naquele instante,
De suas naus em terra, o desculpasse.
Partido assi o embaixador prestante,
Como na terra ao Rei se apresentasse,
Com estilo que Palas lhe ensinava,
Estas palavras tais falando orava:

- «Sublime Rei, a quem do Olimpo puro
Foi da suma Justiça concedido
Refrear o soberbo povo duro,
Não menos dele amado, que temido:
Como porto mui forte e mui seguro,
De todo o Oriente conhecido,
Te vimos a buscar, pera que achemos
Em ti o remédio certo que queremos.


«Não somos roubadores que, passando
Pelas fracas cidades descuidadas,
A ferro e a fogo as gentes vão matando,
Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;
Mas, da soberba Europa navegando,
Imos buscando as terras apartadas
Da Índia, grande e rica, por mandado
De um Rei que temos, alto e sublimado.

«Que geração tão dura há i de gente,
Que bárbaro costume e usança feia,
Que não vedem os portos tão somente,
Mas inda o hospício da deserta areia?
Que má tenção, que peito em nós se sente,
Que de tão pouca gente se arreceia?
Que, com laços armados, tão fingidos,
Nos ordenassem ver-nos destruídos?

«Mas tu, em quem mui certo confiamos
Achar-se mais verdade, ó Rei benino,
E aquela certa ajuda em ti esperamos
Que teve o perdido Ítaco em Alcino,
A teu porto seguros navegamos,
Conduzidos do intérprete divino;
Que, pois a ti nos manda, está mui
Claro Que és de peito sincero, humano e raro.

«E não cuides, ó Rei, que não saísse
O nosso Capitão esclarecido
A ver-te ou a servir-te, porque visse
Ou suspeitasse em ti peito fingido;
Mas saberás que o fez, por que cumprisse
O regimento, em tudo obedecido,
De seu Rei, que lhe manda que não saia,
Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.



«E porque é de vassalos o exercício
Que os membros têm, regidos da cabeça,
Não quererás, pois tens de Rei o ofício,
Que ninguém a seu Rei desobedeça;
Mas as mercês e o grande benefício
Que ora acha em ti, promete que conheça
Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,
Enquanto os rios pera o mar correrem.»

Assi dizia; e todos juntamente,
Uns com outros em prática falando,
Louvavam muito o estâmago da gente
Que tantos céus e mares vai passando;
E o Rei ilustre, o peito obediente
Dos Portugueses na alma imaginando,
Tinha por valor grande e mui subido
O do Rei que é tão longe obedecido;

E com risonha vista e ledo aspeito,
Responde ao embaixador, que tanto estima:
- «Toda a suspeita má tirai do peito,
Nenhum frio temor em vós se imprima,
Que vosso preço e obras são de jeito
Pera vos ter o mundo em muita estima;
E quem vos fez molesto tratamento
Não pode ter subido pensamento.

«De não sair em terra toda a gente,
Por observar a usada preminência,
Ainda que me pese estranhamente,
Em muito tenho a muita obediência
Mas, se lho o regimento não consente,
Nem eu consentirei que a excelência
De peitos tão leais em si desfaça,
Só porque a meu desejo satisfaça.


«Porém, como a luz crástina chegada
Ao mundo for, em minhas almadias
Eu irei visitar a forte armada,
Que ver tanto desejo há tantos dias.
E, se vier do mar desbaratada
Do furioso vento e longas vias,
Aqui terá de limpos pensamentos
Piloto, munições e mantimentos.»

Isto disse; e nas águas se escondia
O filho de Latona; e o mensageiro,
Co a embaixada, alegre se partia
Pera a frota no seu batel ligeiro.
Enchem-se os peitos todos de alegria,
Por terem o remédio verdadeiro
Pera acharem a terra que buscavam;
E assi ledos a noite festejavam.

Não faltam ali os raios de artifício,
Os trémulos cometas imitando;
Fazem os bombardeiros seu ofício,
O céu, a terra e as ondas atroando;
Mostra-se dos Ciclopas o exercício,
Nas bombas que de fogo estão queimando;
Outros com vozes com que o céu feriam,
Instrumentos altíssonos tangiam.

Respondem-lhe da terra juntamente,
Co raio volteando com zunido;
Anda em giros no ar a roda ardente,
Estoira o pó sulfúreo escondido;
A grita se alevanta ao céu, da gente;
O mar se via em fogos acendido
E não menos a terra; e assi festeja
Um ao outro, à maneira de peleja.


Mas já o Céu inquieto, revolvendo,
As gentes incitava a seu trabalho;
E já a mãe de Menon, a luz trazendo
Ao sono longo punha certo atalho;
Iam-se as sombras lentas desfazendo,
Sobre as flores da terra em frio orvalho,
Quando o Rei Melindano se embarcava,
A ver a frota que no mar estava.

Viam-se em derredor ferver as praias,
Da gente que a ver só concorre leda;
Luzem da fina púrpura as cabaias,
Lustram os panos da tecida seda.
Em lugar de guerreiras azagaias
E do arco que os cornos arremeda
Da Lüa, trazem ramos de palmeira,
Dos que vencem, coroa verdadeira.

Um batel grande e largo, que toldado
Vinha de sedas de diversas cores,
Traz o Rei de Melinde, acompanhado
De nobres de seu Reino e de senhores.
Vem de ricos vestidos adornado,
Segundo seus costumes e primores;
Na cabeça, üa fota guarnecida
De ouro, e de seda e de algodão tecida;

Cabaia de Damasco rico e dino,
Da Tíria cor, entre eles estimada;
Um colar ao pescoço, de ouro fino,
Onde a matéria da obra é superada,
Cum resplandor reluze adamantino;
Na cinta a rica adaga, bem lavrada;
Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,
Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.


Com um redondo emparo alto de seda,
Nüa alta e dourada hástea enxerido,
Um ministro à solar quentura veda
Que não ofenda e queime o Rei subido.
Música traz na proa, estranha e leda,
De áspero som, horríssono ao ouvido,
De trombetas arcadas em redondo,
Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.

Não menos guarnecido, o Lusitano,
Nos seus batéis, da frota se partia,
A receber no mar o Melindano,
Com lustrosa e honrada companhia.
Vestido o Gama vem ao modo Hispano,
Mas Francesa era a roupa que vestia,
De cetim da Adriática Veneza,
Carmesi, cor que a gente tanto preza;

De botões d'ouro as mangas vêm tomadas
Onde o Sol, reluzindo, a vista cega;
As calças soldadescas, recamadas
Do metal que Fortuna a tantos nega;
E com pontas do mesmo, delicadas,
Os golpes do gibão ajunta e achega;
Ao Itálico modo a áurea espada;
Pruma na gorra, um pouco declinada.

Nos de sua companhia se mostrava
Da tinta que dá o múrice excelente
A vária cor, que os olhos alegrava,
E a maneira do trajo diferente.
Tal o fermoso esmalte se notava
Dos vestidos, olhados juntamente,
Qual aparece o arco rutilante
Da bela Ninfa, filha de Taumante.


Sonorosas trombetas incitavam
Os ânimos alegres, ressoando;
Dos Mouros os batéis o mar coalhavam,
Os toldos pelas águas arrojando;
As bombardas horríssonas bramavam,
Com as nuvens de fumo o Sol tomando;
Amiúdam-se os brados acendidos,
Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.

Já no batel entrou do Capitão
O Rei, que nos seus braços o levava;
Ele, co a cortesia que a razão
(Por ser Rei) requeria, lhe falava.
Cüas mostras de espanto e admiração,
O Mouro o gesto e o modo lhe notava,
Como quem em mui grande estima tinha
Gente que de tão longe à Índia vinha.

E com grandes palavras lhe oferece
Tudo o que de seus reinos lhe cumprisse,
E que, se mantimento lhe falece,
Como se próprio fosse, lho pedisse.
Diz-lhe mais que por fama bem conhece
A gente Lusitana, sem que a visse;
Que já ouviu dizer que noutra terra
Com gente de sua Lei tivesse guerra;

E como por toda Africa se soa,
Lhe diz, os grandes feitos que fizeram
Quando nela ganharam a coroa
Do Reino onde as Hespéridas viveram;
E com muitas palavras apregoa
O menos que os de Luso mereceram
E o mais que pela fama o Rei sabia;
Mas desta sorte o Gama respondia:


- «Ó tu que, só, tiveste piedade,
Rei benigno, da gente Lusitana,
Que com tanta miséria e adversidade
Dos mares exprimenta a fúria insana:
Aquela alta e divina Eternidade
Que o Céu revolve e rege a gente humana,
Pois que de ti tais obras recebemos,
Te pague o que nós outros não podemos.

«Tu só, de todos quantos queima Apolo,
Nos recebes em paz, do mar profundo;
Em ti, dos ventos hórridos de Eolo
Refúgio achamos, bom, fido e jocundo.
Enquanto apacentar o largo Pólo
As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,
Onde quer que eu viver, com fama e glória
Viverão teus louvores em memória.»

Isto dizendo, os barcos vão remando
Pera a frota, que o Mouro ver deseja;
Vão as naus üa e üa rodeando,
Por que de todas tudo note e veja.
Mas pera o Céu Vulcano fuzilando,
A frota co as bombardas o festeja
E as trombetas canoras lhe tangiam;
Cos anafis os Mouros respondiam.

Mas, despois de ser tudo já notado
Do generoso Mouro, que pasmava
Ouvindo o instrumento inusitado,
Que tamanho terror em si mostrava,
Mandava estar quieto e ancorado
N'água o batel ligeiro que os levava,
Por falar de vagar co forte Gama
Nas cousas de que tem notícia e fama.



Em práticas o Mouro diferentes
Se deleitava, perguntando agora
Pelas guerras famosas e excelentes
Co povo havidas que a Mafoma adora;
Agora lhe pergunta pelas gentes
De toda a Hespéria última, onde mora;
Agora, pelos povos seus vizinhos,
Agora, pelos húmidos caminhos.

- «Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta (lhe dizia), diligente,
Da terra tua o clima e região
Do mundo onde morais, distintamente;
E assi de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Cos sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço;

«E assi também nos conta dos rodeios
Longos em que te traz o Mar irado,
Vendo os costumes bárbaros, alheios,
Que a nossa Africa ruda tem criado;
Conta, que agora vêm cos áureos freios
Os cavalos que o carro marchetado
Do novo Sol, da fria Aurora trazem;
O vento dorme, o mar e as ondas jazem.

«E não menos co tempo se parece
O desejo de ouvir-te o que contares;
Que quem há que por fama não conhece
As obras Portuguesas singulares?
Não tanto desviado resplandece
De nós o claro Sol, pera julgares
Que os Melindanos têm tão rudo peito
Que não estimem muito um grande feito.


«Cometeram soberbos os Gigantes,
Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;
Tentou Perito e Teseu, de ignorantes,
O Reino de Plutão, horrendo e escuro.
Se houve feitos no mundo tão possantes,
Não menos é trabalho ilustre e duro,
Quanto foi cometer Inferno e Céu,
Que outrem cometa a fúria de Nereu.

«Queimou o sagrado templo de Diana,
Do sutil Tesifónio fabricado,
Heróstrato, por ser da gente humana
Conhecido no mundo e nomeado.
Se também com tais obras nos engana
O desejo de um nome aventajado,
Mais razão há que queira eterna glória
Quem faz obras tão dinas de memória.».

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