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quinta-feira, 9 de junho de 2011

ANÁLISE SOBRE O FILME NELL : A SELVAGEM E A LINGUAGEM


NELL, Direção: Michael Apted. Produção: Renee Missel e Jodie Foster. Protagonistas: Jodie Foster, Liam Neeson e Natasha Richardson. Fox Video, 1995. 115 min.
O filme Nell trata da história de uma pessoa que viveu isolada junto com sua mãe em uma floresta, distante da cidade e do contato com a zona urbana. Após a morte de sua mãe, a personagem Nell passa a viver sozinha. O enredo do filme mostra a tentativa de civilizar Nell, nas ações do médico e da psicóloga.
Na sinopse do filme, encontra-se a seguinte questão: Mas será certo civilizar uma pessoa selvagem, sem que ela deseje realmente isso?
Conforme a perspectiva adotada para conceituar cultura, pode-se afirmar que Nell não tinha cultura. Isso seria possível, desde que a base fosse etnocêntrica.
Em paralelo, observando-se o conceito de cultura sob o viés relativista, pode-se confirmar a cultura de Nell.
A partir dessas noções, traça-se um curioso embate entre o que é cultura e o que não é cultura. Todos os personagens do filme, em princípio, consideram Nell uma selvagem. Nesse sentido, atribuem a ela a não civilização, um comportamento distinto do deles, uma falta de sociabilidade; enfim, o vário requisito para se viver em sociedade, sob o prisma deles, a personagem não apresentava.
Ao se considerar, por exemplo, os rituais que Nell praticava como a maneira como sepultou sua mãe ou a sua ida ao rio à noite para banhar-se ou mesmo o retorno ao local onde sua irmã tinha sido enterrada, não se pode, numa perspectiva relativista, considerar que ela não possui cultura. Ao contrário, ela, mesmo isolada, mantinha a tradição cultural de seu grupo, qual seja, sua mãe e sua irmã.
Quando os personagens Lovell e Paula pensam numa classificação para Nell como deficiente mental, fica patente sua visão de que alguém com comportamento diferente do que se considera normal, pelo seu grupo social, necessita ser classificado como anormal. Entretanto, após uma certa convivência com Nell, tanto o médico quanto à psicóloga, percebem que Nell não apresenta qualquer tipo de deficiência, apenas ela teve um locus diferente. Isso produz nos dois personagens um início de percepção deslocada da visão etnocêntrica, o que se traduz, inclusive, num olhar diferente para a própria vida.
Considerando-se a convivência entre Nell, Lovell e Paula, compreende-se melhor questões concernentes aos equívocos que muitas sociedades cometem na tentativa de imposição de sua cultura frente à cultura do outro, ou mesmo, de não consideração da cultura diferente. O inicial exotismo verificado pelos personagens deu lugar a um encantamento associado a um desejo de entender melhor aquele universo bastante peculiar que Nell apresentava.
Também, provocou no médico e na psicóloga uma imersão para si mesmos, quando eles passaram a vislumbrar as possibilidades diferentes que eles próprios poderiam ter em relação a sua própria vida. Isso foi bastante revelador no filme, já que demonstrou uma possibilidade de, em contato com uma cultura diferente, as pessoas passarem a ter uma noção mais relativa de sua própria cultura.
A cena do julgamento, ao final do filme, chama à reflexão desses aspectos, posto que Nell mostra a todos naquela audiência o quanto ela é um ser humano , ainda que tenha vivido em condições diferentes das de todos ali. Ela demonstra todo seu carinho, seu medo, sua angústia, sua vontade, enfim, sem nem mesmo falar a língua que os outros queriam que ela falasse, nesse caso, o inglês.
Nesse aspecto, a personagem prova que a linguagem humana é universal, que os sentimentos e tudo o que está em torno deles são universalmente produzidos pelo homem. Isto é, não é pelo fato de Nell ter vivido isolada da pretensa civilização que ela não teria os mesmos sentimentos que todos os considerados civilizados . Ao contrário, percebe-se nela uma pureza que normalmente não se verifica em pessoas ditas civilizadas.
A linguagem, então, apresentada por Nell, é especificamente reveladora, já que ela adquiriu sua primeira língua a partir do contato com sua mãe, que tinha uma espécie de paralisia facial. Disso decorrem aspectos fonéticos muito interessantes da personagem, em que ela reproduz as mesmas dificuldades que sua mãe apresentava para falar, porém Nell não tinha paralisia facial.
Nesse sentido, podem ser confirmadas as teorias linguísticas de base social cuja fundamentação trata da aquisição da língua pelo contato social. Nell adquiriu uma língua, sua primeira, a partir de um contato social com uma única pessoa, sua mãe, que apresentava dificuldades na articulação. Ela reproduziu tais dificuldades.
Quando a personagem passou a manter interações com outras pessoas, o médico e a psicóloga, por exemplo, inicialmente, apresentou sérios problemas de comunicação verbal; entretanto, à medida das interações, ela passa a acumular conhecimentos linguísticos outros, ampliando seu léxico, restrito até então em razão de seu contato linguístico ter sido apenas com sua mãe.
Retornando, mais precisamente, à questão: Mas será certo civilizar uma pessoa selvagem, sem que ela deseje realmente isso? , lançamos, a título de reflexão, alguns aspectos relacionados a isso: Qual seria o conceito de selvagem?
Civilizar é, necessariamente, tornar uma pessoa melhor? Com que direito alguém pode mensurar o desejo do outro? Assim como as culturas são distintas, as línguas também o são, então Nell teria de fato uma língua?
Dessa forma, não se deve pensar Nell como uma selvagem, mas sim, como uma pessoa que vive uma outra cultura, bastante distinta da nossa, nem por isso melhor ou pior. Além disso, seria bastante hipotético, a priori , tecer qualquer tipo de consideração acerca dos desejos dela, tanto que a convivência dos três os fez adaptar seus comportamentos no sentido de entender melhor uns aos outros.
Portanto, pelo menos no filme, constata-se uma convivência pacífica entre Nell e os outros, mostrada na cena final, em que as culturas são respeitadas e não há a imposição de uma das culturas. No entanto, pode-se inferir que Nell sofreu mais adaptações à cultura da cidade que o contrário.

Por Prof. Me. Flávio Valadares Mestre em Linguística/PUC-Rio, Professor de Linguística da Faculdade Saberes.

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