De súbito, Jorge
acordou duma sucessão de imagens terríveis. Pobre Jorge. Há muito não dorme,
não é mais o mesmo. A rotina o definha devagar, mansamente. Só ele não
percebia... Até a madrugada de 31 pro dia 01 de novembro. Isso. Mês onze, mês
novo, mês de renovação. É mesmo interessante a ideia de que, a cada novo mês,
se abre uma nova porta para a realidade. Tem também aqueles que acreditam que
isso ocorre dum dia pro outro. Vai saber. O fato é que Jorge não via nada de
novo. Batiam ali, seguramente, como em todos os outros dias que se passaram,
3:00 h da manhã. Parecia um ciclo. Jorge não sabia ao certo seu início. Muito
menos o fim. Pobre Jorge. Tentou dormir de novo. Foi inútil. Deu 3:30, 4:00,
4:30. Não. Agora, ele tinha de tomar uma providência. Estava complicada a
coisa. Claro. Levantou-se, fez um café e se pôs a escutar Los Hermanos num
velho fone de ouvido que só prestava um lado. Começou a negar tudo aquilo que
tinha visto. "Foi terrível", pensava. Jorge estava mesmo farto dessa
cenazinha repetida. Estava cansado, o corpo doía, a cabeça, por vezes, dava
marteladas internas numa tentativa de comunicar ao desgraçado que ele já estava
abusando demais. Jorge estava mesmo extrapolando. Se dormisse, era um ato quase
involuntário. Até aí tudo bem. Complicado mesmo era todo aquele confinamento.
Mas, antes disso, o que fazia esse sujeito durante todo esse tempo de virgília
?
Devorava,
progressivamente, os livros de literatura que dispunha. Era mesmo um apaixonado
por contos, crônicas, romances. Quando uma ou outra leitura o causava tédio,
ele recorria às crônicas de Luís Fernando Veríssimo e soltava gargalhadas
contidas por conta do horário. Era estudante do curso de filosofia duma
universidade local. Mas não ia à faculdade há meses, pois os professores da
rede pública estavam todos de greve. Jorge achava um tanto chata aquela
situação, porque o atrasava em sua formação acadêmica. Mas, por outro lado,
apoiava com sensatez e afinco os professores, pois sabia do descaso, que já se
estendia há um certo tempo, para com a classe. No fim das contas, foi até
melhor a paralisação. Jorge estava tão emergido em suas reflexões filosóficas
que estava dificultando o contato com outras pessoas. Ora, não é mesmo bom
exagerar e reter-se apenas numa coisa, visto que há tantas outras para se
explorar. Foi então que Jorge entregou-se aos livros de literatura. Não sei bem
se entendeu a mensagem...
Jorge era novo,
mas, principalmente ultimamente, andava com um aspecto envelhecido, com o
cansaço estampado na cara.
Decidiu sair de
casa numa noite dessas. Foi numa exposição cultural de um colégio de sua
cidade. Chegando lá, encontrou um conhecido e pôs-se a conversar com o fulano.
Conversa vai, conversa vem e eis que, depois de Jorge expôr a situação na qual
se encontrava, o sujeito diz:
— Bicho, tu vai
ficar doido. E sorri.
Jorge sorri e,
saindo, diz:
— Tomara que
daqui pra lá eu já tenha escrito uns quatro livros.
Ah, é. Este é um
detalhe que quase me escapou. Jorge era escritor. E passava por uma nova fase,
turbulenta, mas interessante. Passado aquele encontro, olhou ao redor e nada o
chamava atenção. Não pensou duas vezes. Voltou para casa. Foi chegando e logo
deitou-se, pois suas pernas o maltratavam por conta daquele meio tempo que
passou caminhando e em pé. Apagou. Não sabe quando, como, mas sabe o porquê. A
cena se repete. Mais uma vez, despertou repentinamente. Às 3:00 h da manhã. Fez
todo aquele seu ritual e já umas 5:10 foi lá dentro de casa esquentar o café.
Quando regressava ao quarto, reparou no céu. Estava lindo. Pequenas nuvenzinhas
brancas cobriam aquele manto gigante e azulado. De modo que se via apenas umas
brechas de todo aquele mar de cima. Já no quarto, pôs "Mon Nom", de
Rodrigo Amarante. Jorge apreciava bastante o francês e as canções de Rodrigo.
Foi então que resolveu tirar aquelas cenas que, desta vez, o fizeram acordar.
Jogou-as nuns pedações de papel que sempre costumava rabiscar.
O que se passou
então ?
Naquela noite...
Antes disso, há
um outro detalhe que quase me esqueci. Jorge vinha passando por um momento
delicado. Até aqui, não há algum segredo. Curiosa é a participação de uma
mulher na vida de Jorge. Clarice. Ah, Clarice...
Não faz muito
tempo. Jorge conhecera uma tal de Clarice na faculdade. Os dois se aproximaram
e se identificaram bastante quase que de imediato. Foi tão natural que Jorge a
convidou para sair com mais ou menos uma semana de conversa. Se iniciava então
o início dum amor.
Era uma tarde
ensolarada de Junho, uma quinta-feira, dum ano que me falha a memória. O fato é
que foi esse dia que Jorge jamais esqueceu.
Clarice sempre
fora uma moça linda e adorável. Eram incríveis os olhos dela quando via a
figura barbuda e baixa de Jorge. Apesar de serem praticamente da mesma altura,
ela sempre caçoava dele por ele ser baixinho. Jorge abria o largo sorriso.
Adorava sorrir com Clarice. Adorava estar com ela, mesmo que nada fizessem. Só
em ver o tempo passar ao lado dela era motivo duma expressão abobalhada que
Jorge carregava para onde quer que fosse. Sem dúvidas, aquela cara de idiota
era culpa dela e somente dela. Duraram pouco mais de seis meses juntos. Após a
separação, ela mudou de curso. Sempre sonhou mesmo em ser psicóloga. Seguiu
adiante então. Essa história pede outro conto ou, simplesmente, se encontra
fragmentada pelos contos que Jorge produziu desde então.
E naquela noite,
Jorge acordou com uma expressão de tristeza mais acentuada que nunca. Queria
chorar, não sei se o fez. Sonhara que Clarice deixava de ser completamente quem
um dia Jorge conheceu. Não era Clarice, não podia ser. No fundo, depois de
grandes conflitos consigo mesmo, talvez, embora não quisesse, acreditava que
Clarice já não era mais aquela Clarice. Não era mais sua e estava mesmo
muitíssimo longe de ser, quiçá, outra vez.
Foi um sonho
tenebroso. Daquele que se lembra os mínimos detalhes. Via a imagem da moça por
completa desfigurada. Agora, ela tinha uma tatuagem na lateral esquerda da mão
esquerda. Era algo escrito em francês, por ironia. Mais irônico ainda é o fato
de , deste pormenor, Jorge não recordar muito bem. Forçou sua memória, de fato
a espremeu, mas, por azar, nada saiu. Foram várias as hipóteses que formulou do
que seria aquela possível palavra ou palavras. Ficou entre duas. Poderia ser
algo do tipo: "Não há mais sentido persistir em algo passado", ou,
"No fundo, eu ainda espero te encontrar. Corra, nem tudo está
perdido."
E Jorge, depois
de duas xícaras de café e várias meditações, saiu do quarto para olhar mais uma
vez o céu. Estava mais aberto, mais convidativo.
As
circunstâncias nada eram favoráveis. Um pingo de otimismo era algo irracional.
E daquelas duas frases, Jorge gostou mesmo foi da segunda. Pensou nela mais uma
vez e sorriu.
MACÊDO,
Gustavo de.
Nenhum comentário:
Postar um comentário