A ESPÉCIE HUMANA E A SUA RELAÇÃO COM O MEIO
O homem, ao contrário dos outros mamíferos, não possui um ambiente específico da espécie, um ambiente firmemente estruturado por sua própria organização instintiva e no qual se adapte sem ter que transforma-lo. Ou seja, "não existe um mundo do homem no sentido em que se pode falar de um mundo do cachorro ou de um mundo do cavalo" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 70). Assim, o fato é que, apesar de aprendizagem e acumulação individuais, tanto o cachorro como o cavalo - lembrando, porém, que para o ideário aqui proposto são exemplos todos os animais não humanos - têm uma relação em grande parte fixa com seu ambiente, do qual participa com os outros membros de sua espécie.
Essa relação entre os animais e seus respectivos mundos fechados possui uma estrutura que é "predeterminada pelo equipamento biológico das diversas espécies animais". Em contraste, "a relação do homem com seu ambiente caracteriza-se pela abertura para o mundo" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 70).
Acrescentaríamos, no entanto, que além da abertura para o mundo, o homem tem como fundamento para o seu desenvolvimento civilizatório a transformação do ambiente em que está circunscrito, e que lhe é hostil em princípio. Pois, não obstante o homem ter se estabelecido na maior parte da superfície da Terra, "sua relação com o ambiente circunstante é em toda parte muito imperfeitamente estruturada por sua própria constituição biológica". A organização instintiva do homem pode ser descrita como "subdesenvolvida, comparada com a de outros mamíferos superiores" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 70).
A relação do homem com o meio e o seu desenvolvimento neste mesmo meio é em si um fenômeno repleto de singularidades. O organismo humano, como lembram Berger e Luckmann, "está ainda desenvolvendo biologicamente quando já se acha em relação com seu ambiente". Em outras palavras, "o processo de tornar-se homem efetua-se na relação com o ambiente". Esta observação adquire ainda maior significação na medida em que refletimos sobre o fato de que este ambiente "é ao mesmo tempo um ambiente natural e humano". Isto é, o ser humano enquanto em desenvolvimento "não somente se correlaciona com um ambiente natural particular, mas também com uma ordem cultural e social específica, que é mediatizada para ele pelos outros significativos que o têm a seu cargo" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 71).
Neste aspecto, não apenas a sobrevivência de uma criança humana depende de certos dispositivos sociais, mas a direção de seu desenvolvimento orgânico - em seu significado mais amplo - é socialmente determinada.
A forma específica em que a humanização se molda é determinada pelas formações sócio-culturais, ou seja, a "humanização é variável em sentido sócio-cultural", sendo relativa às suas numerosas variações. De acordo com Berger e Luckmann (1976, p. 72) "embora seja possível dizer que o homem tem uma natureza, é mais significativo dizer que o homem constrói sua própria natureza, ou, mais simplesmente, que o homem se produz a si mesmo".
Tomando com exemplo a configuração sexual, distintiva de qualquer que seja a cultura, Berger e Luckmann apontam para o fato de que todas elas têm seus próprios padrões especializados de conduta sexual e seus pressupostos antropológicos na referida área. Assim, "a relatividade empírica dessas configurações, sua imensa variedade e exuberante inventividade indicam que são produtos das formações sócio-culturais próprias do homem e não de uma natureza humana biologicamente fixa" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 73).
O período durante o qual o organismo humano se desenvolve até completar-se na correlação com o ambiente é também o período durante o qual o eu humano se forma. Por conseguinte, a formação do eu deve também ser compreendida em relação com o contínuo desenvolvimento orgânico e com o processo social, no qual o ambiente natural e o ambiente humano são mediatizados pelos outros significativos. (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 73).
Dessa forma,
[...] o caráter do eu como produto social não se limita à configuração particular que o indivíduo identifica como sendo ele mesmo (por exemplo, como 'um homem', de maneira particular em que esta identidade é definida e formada na cultura em questão), mas com o equipamento psicológico amplo que serve de complemento a essa particular configuração (por exemplo, emoções 'viris', atitudes e mesmo reações somáticas). (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 73-74).
Portanto, o organismo, assim como também o eu, não pode ser devidamente compreendido fora do particular contexto social em que fora formado. O desenvolvimento comum do organismo humano e do eu humano em um ambiente socialmente determinado "refere-se à relação particularmente humana entre organismo e eu" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 74). Assim, se
[...] por um lado, o homem é um corpo, no mesmo sentido em que isto pode ser dito de qualquer outro organismo animal. Por outro lado, o homem tem um corpo. Isto é, o homem experimenta-se a si próprio como uma entidade que não é idêntica a seu corpo, mas que, pelo contrário, tem esse corpo ao seu dispor. (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 74).
Em outras palavras, a experiência que o homem tem de si mesmo "oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e ter um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando". Esta originalidade da experiência que o homem tem de seu próprio corpo "leva a certas consequências no que se refere à análise da atividade humana como conduta no ambiente natural e como exteriorização de significados subjetivos" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 74).
Dessa forma, de acordo com esses pressupostos teóricos, fundados em fatos antropológicos essenciais, para uma compreensão adequada de qualquer fenômeno humano será preciso levar em consideração estes dois aspectos, ou seja, no fato do homem ser um corpo e ao mesmo tempo ter uma consciência que lhe permita a noção de ter um corpo.
A autoprodução do homem é sempre e necessariamente um empreendimento social. "Os homens em conjunto produzem um ambiente humano, com a totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas". Tomando por base esse pressuposto podemos admitir como factível o entendimento de que tanto é impossível o homem se desenvolver como homem no isolamento, como é impossível que o homem isolado produza um ambiente humano. Ou seja, "a humanidade específica do homem e sua socialidade estão inextrincavelmente entrelaçadas" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 75).
Empiricamente, a existência humana decorre de um contexto de ordem, direção e estabilidade. A ordem social, ao que se pode verificar em Berger e Luckmann (1976, p. 76), é um produto humano, ou, mais especificamente, "uma progressiva produção humana". Ou seja, tanto "em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada)" quanto a "sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a atividade humana continua a produzi-la)" ela é um produto humano.
Com base nesses dados, verifica-se a impossibilidade de se pensar o ser humano em uma esfera de interioridade serena, tranquila. O ser humano tem de estar continuamente se exteriorizando nas atividades, e "esta necessidade antropológica funda-se no equipamento biológico do homem. A inerente instabilidade do organismo humano obriga o homem a fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 77).
Dessa discussão extrai-se a noção de que o homem é um ser não muito harmônico com o ambiente terrestre. E, em função disso, este mesmo homem, por uma necessidade pautada na sua inferioridade biológica no que se refere a uma coexistência tranquila com o meio, encontra-se em constante inquietação, buscando ao longo de sua história, mudar, sofisticar, civilizar o meio que o rodeia.
Nota-se também que toda mudança posta em prática é produzida em sociedade, o ambiente humano é construído em sociedade. Da vida em sociedade nasce a ordem social com uma progressiva produção humana, e com ela o homem vai moldando o meio conforme suas necessidades.
Contudo, está posto que a vida em sociedade é ela própria uma necessidade humana, assim como também o é a sua relação e identificação com o meio. Nesses termos, tendo como base o fato de que o processo civilizatório imposto pelo homem, processo no qual a individualização e o afastamento do meio natural parecem ser a tônica do seu resultado último, ou seja, o modo de vida hodierno, a indagação que se suscita está pautada na leitura desse contexto contemporâneo.
A INSATISFAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Com base no material compilado para este estudo, assim como também no próprio estudo que aqui se desenvolve, parece-nos factível o entendimento de que o homem, devido a sua inadequação biológica, se viu desde o início frente à necessidade de mudar, de reestruturar, de reorganizar o meio e melhor adequá-lo à sua existência, às suas necessidades. Não obstante, seus padrões de existência se alteraram e se sofisticaram cada vez mais, mesmo depois de terem atingido um nível satisfatório de domínio do meio, nível este capaz de lhe assegurar uma existência com relativa segurança. Nesse sentido, há de se destacar o termo "sociedade insatisfeita" que, como observado por Agnes Heller, foi cunhado para destacar um traço conspícuo da identidade ocidental. De acordo com a autora, "a idéia de 'sociedade insatisfeita' busca captar a especificidade de nossa época mundial da perspectiva das necessidades ou, mais particularmente, da criação, percepção, distribuição e satisfação das necessidades" (HELLER, 1998, p. 29).
As observações feitas pela autora sugerem que a forma moderna de criação, percepção e distribuição de necessidades reforça a insatisfação, independente - e este é um dado que particularmente merece destaque - de alguma necessidade concreta ser ou não de fato satisfeita.
A insatisfação do homem estaria, portanto, acima de qualquer necessidade concreta que possa ou não ser justificada, e que possa ou não vir a ser de fato satisfeita. Essa insatisfação seria a exteriorização de uma especificidade que, segundo Heller, é característica de nossa época. Não obstante, sugere a autora que uma insatisfação geral "atua como uma vigorosa força motivacional na reprodução das sociedades modernas" (HELLER, 1998, p. 29). Dito isto, segue-se que:
[...] se as pessoas deixassem de se sentir insatisfeitas com sua sorte - sua riqueza material, posição social, relações pessoais, conhecimento e desempenho, de um lado, e, do outro, suas instituições, organizações sociais e políticas, e a condição geral de tudo no mundo - a sociedade moderna não mais poderia reproduzir-se. (HELLER, 1998, p. 29).
Se isso acontecesse, de acordo com o pensamento de Heller, entraríamos em uma era de decadência ou decomposição, e a sociedade, na forma como a conhecemos, acabaria sem dúvida desmoronando.
Mesmo que a insatisfação não seja a única essência da sociedade moderna, ela certamente exerce uma influência demasiado grande nas formas de vida dessa sociedade. Nesse é também preciso destacar o ingrediente "necessidade", que devido ao fato de ter um vínculo bastante íntimo com esse processo de insatisfação é também uma base extremamente relevante.
A necessidade e a insatisfação foram motivos para o homem, ao longo de sua história, produzir profundas transformações na sociedade e no meio. O modo de vida contemporâneo, em conseqüência, atinge padrões de sofisticação e de civilização extremos. O contato do homem com muito daquilo que por muito tempo foi natural hoje é um passado que parece muito distante.
Em notável antecipação do que viria Kant propôs uma superação de um ramo antropológico que estudasse o que a natureza fez do homem, sugerindo que este fosse chamado de "fisiológico"; propondo um outro ramo antropológico que estudasse o que o homem faz de si mesmo, sugerindo agora que este fosse denominado de "pragmático". Este parece ser um caminho bastante sugestivo para a investigação aqui proposta.
A realidade humana comporta uma assustadora multiplicidade de situações e fatos relevantes, uns de natureza fisiológica, outros de natureza psicológica ou sociológica ou econômica etc. - tudo isto sintetizado em uma dinâmica complexa que faz contrapontearem encontros e desencontros, afinidades e desafinidades, numa polarização de energias que se organizam portentosamente e se estão perenemente reorganizando.
Não obstante, ao se lançar ao estudo de aspectos ligados ao interesse e/ou comportamento humano é preciso fazê-lo levando-se em conta a sua interação com a totalidade constituída e que constitui o ser humano. A este respeito, e dirigindo uma crítica aos chamados "cientistas" em detrimento dos "filósofos", Morais assim externa:
[...]o que vemos é a atividade científica insistentemente abstrair da globalidade do humano os aspectos diretamente ligados aos seus interesses cognitivos, o que acaba provocando - do ponto de vista das estruturas mais amplas e gerais do conhecimento - um comportamento abstrativo por parte exatamente dos cientistas. Em contrapartida, vemos as propostas de prática filosófica como propostas de reflexão de totalidade; vale dizer: a sempre tentativa de integração dos fenômenos particulares em sua iluminadora globalidade. De tal modo que o projeto filosófico se vem apresentando como algo muito mais concretivo epistemológicamente" (MORAIS, 1992, p. 25).
Crítica semelhante é encontrada em Elias, que entende que para se estudar as diferentes manifestações dos seres humanos, visto que estas respondem a um contexto em que todas estão em conexão, ou seja, em estado de interdependência, estas serão mais bem compreendidas no esteio da relação entre a sociogênese e a psicogênese. Pois, como diz Elias:
Permanece sem reconhecimento o fato de que uma psicologia social histórica, um estudo simultaneamente psicogenético e sociogenético, é necessária para traçar as conexões entre todas essas diferentes manifestações dos seres humanos. Os que se interessam pela história da sociedade, como os que estudam a história da mente, encaram a "sociedade" e o mundo das "idéias" como duas formações diferentes que pode haver sentido em separar. (ELIAS, 1993, 2v, p. 234-235).
Essa é uma crítica bastante presente nos escritos de Elias, ou seja, a compartimentalização dos estudos dirigidos aos seres humanos. A este respeito, relata Dunning (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 20-21), com relativo apoio em Johan Goudsblom, que a preocupação de Elias consiste no estudo "global" dos seres humanos e não apenas de aspectos particulares de suas vidas.
Dando prosseguimento às suas constatações, Elias (1993, 2v, p. 235) argumenta que, aparentemente, ambos - historiadores e psicólogos - "acreditam que há uma sociedade fora das idéias e pensamentos, ou idéias fora da sociedade". E, não obstante, "[...] simplesmente discutem qual desses dois reinos é mais 'importante', dizendo uns que são as idéias, sem a sociedade, que põem esta última em movimento, e outros que é uma sociedade sem idéias que deflagram as idéias".
Ou seja,
Elias atribui nítida prioridade à síntese em relação à análise, e esforça-se por evitar a compartimentalização das pessoas e das sociedades humanas segundo categorias como "económico", "político" e "social" - como se "o económico" e "o político" não fizessem parte, de algum modo, da "sociedade" - ou "biológico", "psicológico" e "sociológico" - como se as pessoas pudessem existir sem corpos, como se seus "espíritos" fossem de alguma maneira fenómenos não físicos ou biológicos, ou como se as "sociedades" pudessem existir, de certa forma, independentemente e separadas do homem e da mulher individuais que as constituem. (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 21).
É por isso que Elias (1993, 2v, p. 234) se refere à "psicologia social histórica", ou seja, para uma superação dessa compartimentalização. Segundo Elias (1993, 2v, p. 234), "na atual estrutura da pesquisa histórica, uma nítida linha divisória costuma ser traçada entre o trabalho dos historiadores e o dos psicólogos".
Exatamente porque o psicólogo pensa não-historicamente, porque aborda as estruturas psicológicas dos homens de nossos dias como se fossem algo sem evolução ou mudança, os resultados de suas investigações de pouco servem ao historiador. E porque, preocupado com o que chama de fatos, evita problemas psicológicos, o historiador pouco tem a dizer ao psicólogo. (ELIAS, 1993, 2v, p. 234).
Contudo, de acordo com Elias, no caso da sociologia a situação é um pouco melhor. Porem, tal fato só se verifica na medida em que esta chega a se interessar por problemas históricos e aceite "sem reservas a linha divisória traçada pelo historiador entre a estrutura aparentemente imutável do homem e suas diferentes manifestações" (ELIAS, 1993, 2v, p. 234).
Caminho que passa pela transposição da frágil barreira da reificação de conceitos, que obscurece e distorce a compreensão da nossa própria vida em sociedade. Tal reificação "é um encorajamento constante à idéia de que a sociedade é constituída por estruturas que nos são exteriores - os indivíduos - e que os indivíduos são simultaneamente rodeados pela sociedade e separados dela por uma barreira invisível" (ELIAS, 1980, p. 15).
O objetivo de Elias é contribuir para o desenvolvimento de uma síntese mais adequada ao objeto, com base tanto na teoria quanto na observação, e para um retrato das pessoas e da sociedade em que estas possam ser descritas como realmente são e não como se supõem que sejam. Ou seja, o aperfeiçoamento de um método que seja adequado ao estudo da integração natural do nível humano-social.
O caminho, segundo Elias (1993, 2v, p. 225-235) - ao estudar o processo civilizador e, dentro dele suas tendências como a psicologização e a racionalização -, é levar em conta o processo de interdependência e a dinâmica imanente das configurações. Pois,
[...] todas as investigações que consideram apenas a consciência do homem, sua "razão" ou "idéias", ignorando ao mesmo tempo a estrutura das pulsões, a direção e a forma de emoções e impulsos humanos, só podem ser, por princípio, um valor bastante limitado. Uma parte enorme do que é indispensável para compreender o homem escapa desse enfoque. A racionalização da atividade intelectual, bem como de todas as mudanças estruturais nas funções do ego e do superego, de todos esses níveis interdependentes da personalidade do homem, serão muito pouco acessíveis ao pensamento, enquanto as indagações se limitarem a mudanças nos aspectos intelectuais, a mudanças de idéias, e pouca atenção se der ao equilíbrio e padrão mutáveis das relações entre pulsões e sentimentos, por um lado, e o controle dos mesmos, por outro. (ELIAS, 1993, 2v, p. 236).
Assim, voltando o pensamento para o significado da modernidade, vemos que uma aproximação - tanto quanto possível - da sua real compreensão, só será viável se levarmos em conta, também, as mudanças dos padrões de interdependência humana em conjunto com a mudança na estrutura da conduta do homem.
Não obstante, é preciso levar em conta que houve um momento na trajetória humana em que se instaurou uma ruptura ontológica. Ou seja, aquele ser que antes pulsava banhado pela consciência cósmica, imerso em total indistinção com toda a natureza, praticamente chegou a desenvolver um estágio de si no qual, não sem passar desapercebido, viu-se diferente do próprio mundo no qual vivia. (MORAIS, 1992, p. 27). Isso tanto pode ser entendido como um problema, ou como o gerador de um problema, pois a vida do homem tem em sua base mais radical um constante intercambio com a natureza. Podemos mesmo dizer que "a característica maior da saúde é a possibilidade de trocas espontâneas e normais, enquanto a doença é exatamente uma situação na qual, por motivação endógena ou exógena, um organismo se vê desequilibrado em sua capacidade de trocas vitais" (MORAIS, 1992, p. 30).
Do ambiente em que vivemos esperamos mais do que simples condições favoráveis à nossa saúde, recursos para fazer funcionar a máquina econômica e tudo o que signifique boas condições ecológicas. Queremos experimentar as satisfações sensoriais, emocionais e espirituais que somente podem ser conseguidas mediante uma interação íntima, ou melhor, uma real identificação com os lugares onde vivemos. "Esta interação e identificação geram o 'espírito de lugar'". O ambiente adquire os "atributos de um lugar pela fusão das ordens natural e humana". Todos os seres humanos têm quase as mesmas necessidades fundamentais quanto ao bem-estar biológico e econômico, mas "muitos de seus diversos anseios de humanidade só podem ser satisfeitos em determinados lugares" (MORAIS, 1992, p. 31).
Podemos concluir que, ao mesmo tempo em que há uma visível separação entre o mundo da natureza e o da cultura, há tal interdependência entre ambos que acaba por evidenciar sua unidade essencial. "O ser humano depende da natureza, precisa dela e a ela recorre incessantemente; ele é natureza e faz parte dela". Entretanto, este mesmo homem "transcende o reduto das realidades naturais quando ultrapassa esta sua dependência, subordina a si a natureza, adapta-a aos seus desideratos, põe-na a serviço de suas próprias finalidades - sem que para tanto a violente". É aí que aparece, diante da inteligência humana, a disposição de fronteiras entre natureza e cultura (MORAIS, 1992, p. 31-32).
Ainda em relação à saúde humana lembramos que Elias vai tratar justamente da relação entre o equilíbrio das tensões e a saúde mental do homem. Parece-nos, que neste momento, na atual fase da evolução humana, a relação entre a saúde mental do homem, o equilíbrio das tensões e a unidade homem-natureza têm significativa importância para os estudos acerca do homem e das sociedades por este criadas.
Em sociedades como as nossas, que exigem uma disciplina emocional bastante grande, uma série de sentimentos agradáveis, fortes, manifestamente expressos são severamente vedados. Trata-se de um controle que, como se verifica em Elias, de tão enraizado e aprimorado pelos estilos de vida, pelo processo civilizatório, passa a ser um controle exercido pelo próprio indivíduo e não apenas pela sociedade, trata-se de um auto-controle.
Há ainda a questão da rotina, o fato de um dia ser igual ao outro, e que para muitas pessoas não é apenas na sua vida profissional, mas também em suas vidas privadas. Para muitas pessoas nada acontece de novo, de interessante. A sua tensão, o seu tônus, a sua vitalidade, ou que quer que seja que se lhe possa chamar, encontra-se baixo. Mas, de acordo com Elias e Dunning (1992, p. 137),
De uma maneira simples ou complexa, a um nível baixo ou a nível elevado, as actividades de lazer proporcionam, por um breve tempo, a erupção de sentimentos agradáveis fortes que, com freqüência, estão ausentes nas suas rotinas habituais da vida.
A função das atividades de lazer, por conseguinte, como apontam Elias e Dunning (1992, p 101-185), não é, como muitas vezes se pensa, simplesmente uma libertação das tensões, mas a renovação de uma medida de tensão, o equilíbrio através de um ingrediente essencial para a saúde mental.
Nas diferentes sociedades faz-se sentir uma necessidade corrente de motivação de fortes emoções, assim:
[...] Seja qual for a relação que esta necessidade possa ter com outras necessidades mais elementares como a fome, a sede e o sexo - todos os dados acentuam o facto de que esta representa um fenómeno muito mais complexo, um fenómeno muito menos puramente biológico -, pode bem considerar-se que o desprezo quanto à atenção dedicada a esta necessidade constitui uma das maiores lacunas na abordagem dos problemas da saúde mental. (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 136-137).
Elias e Dunning reúnem vários exemplos de diferentes tipos de atividades miméticas, e indicam como característica comum não a libertação de tensão, mas, antes, a produção de tensão de um tipo particular, o desenvolvimento de uma agradável tensão-excitação. Esta seria a peça fundamental de satisfação no lazer. Para um melhor entendimento das implicações individuais e sociais do lazer é preciso compreender a função da excitação mimética das atividades de lazer. Elias e Dunning desenvolvem todo um ideário a respeito e nos dão subsídios para tentar compreender as diversas formas de atividades de lazer em detrimento de necessidades específicas da sociedade e do indivíduo.
AS ORIGENS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Toda atividade humana está sujeita ao hábito. De acordo com Berger e Luckmann (1976, p. 78), "o hábito fornece a direção e a especialização da atividade que faltam no equipamento biológico do homem, aliviando assim o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigidos".
A institucionalização, nesse caso, ocorre sempre que há uma "tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores". Ou seja, qualquer uma dessas tipificações é uma instituição. No entanto, as instituições "implicam, além disso, a historicidade e o controle" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 79).
As instituições têm sempre uma história, da qual são produtos. "É impossível compreender adequadamente uma instituição sem entender o processo histórico em que foi produzida". E as instituições, pelo simples fato de existirem, "controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que seriam teoricamente possíveis" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 80).
Nesse aspecto, um mundo social está em processo de construção, contendo nele as raízes de uma ordem institucional em expansão. Contudo, observações devem ser feitas ao fato de que "experimentam-se as instituições como se possuíssem realidade própria, realidade com a qual os indivíduos se defrontam na condição de fato exterior e coercitivo" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 84). Todas as instituições aparecem como dadas, inalteráveis e evidentes.
Este é o paradoxo que consiste no fato do homem ser capaz de produzir um mundo que em seguida experimenta como algo diferente de um produto humano. Assim, "o homem, o produtor, e o mundo social, produto dele, é e permanece sendo uma relação dialética, isto é, o homem (evidentemente não o homem isolado mas em coletividade) e seu mundo social atuam reciprocamente um sobre o outro" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 87).
Há de se destacar, diante a este contexto, a relação fundamental entre os três momentos dialéticos na realidade social: "A sociedade é um produto humano. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem é um produto social" (BERGER; LUCKMANN, 1976, p. 77).
Tem-se assim um panorama do quão complexo é a vida e as atividades humanas. O homem cria a sociedade, cria as normas e as regras, as quais se objetivam na realidade vivida, e o homem, então, passa a ser produto daquilo que ele próprio criou, mas não mais se vê como parte integrante, viva, indissociável, daquilo que criou.
A sociedade, as normas e regras, a institucionalização dos hábitos, o molde, o modelo de como ser e de como agir, se por um lado, segundo apontam Berger e Luckmann (1976), fornecem a direção e a especialização da atividade, aliviando o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigidos, por outro, de acordo com Elias - sem contrariar a parte citada acima, pois para ele a mobilização e padronização das disposições naturais dos seres humanos, no sentido de se constrangerem por meio de aprendizagem, são indispensáveis não apenas para a sobrevivência dos grupos humanos, mas, também para a sobrevivência de cada um de seus membros - exercem também o papel contrário, ou seja, atuam em direção ao acúmulo de tensões, pois os padrões de como ser e de como agir deixam poucas frestas para se comportar de maneira espontânea.
É com base neste contexto que vamos verificar em Elias a indicação de que a maioria das sociedades humanas desenvolve algumas contramedidas em oposição às tensões do stress que elas próprias criam. Não sem razão, observa que as sociedades ao atingirem um nível relativamente avançado de civilização, ou seja, com relativa estabilidade e com forte necessidade de sublimação, as restrições harmoniosas e moderadas atingem toda uma multiplicidade de atividades. As atividades de lazer, e o esporte como uma variante, vão, então, ter a função de libertação das tensões derivadas das pressões sociais.
Um dos principais traços fisionómicos das sociedades altamente diferenciadas e abastadas do nosso tempo é o facto de apresentarem uma variedade de actividades de lazer superior a qualquer outra sociedade que se possa imaginar. Muitas dessas ocupações de lazer, entre as quais o desporto nas suas formas de prática ou de espetáculo, são então consideradas como meios de produzir um descontrolo de emoções agradável e controlado. (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 73).
Essa grande variedade de atividades de lazer - tendo ainda nas atividades esportivas uma de suas ramificações -, provenientes das sociedades complexas, possibilitam aos seus indivíduos uma vasta possibilidade de escolhas.
Uma ou outra podem ser adoptadas, de acordo com os temperamentos, constituição física, necessidades libidinais, afectivas ou emocionais. Algumas destas actividades de lazer podem evocar, de forma mimética, arrependimento ou medo, tanto quanto alegria e triunfo, afeição e amor ou ódio. No contexto de uma peça ou de um concerto, de um quadro ou de um jogo, ao permitir-se que estes sentimentos fluam livremente no seu contexto simbólico, alivia-se o fardo global que é inerente à vida das pessoas, fora do âmbito do lazer. (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 73).
Em síntese, sem instituições sociais que possam proporcionar, por assim dizer, a renovação emocional, a restituição do equilíbrio - que é dinâmico - entre os esforços e as pressões da vida diária, com os seus riscos e seus constrangimentos, e as tensões prazerosas, parece-nos que a saúde mental, como verificado em Elias, pode ser abalada.
É neste contexto que acreditamos esteja a base para se estudar o desenvolvimento das atividades de aventura na natureza (AFAN). Levando-se em consideração os aspectos verificados acerca do modo de vida das sociedades contemporâneas e as características das atividades miméticas de lazer, parece-nos que as AFANs se caracterizam de forma íntima e específica como atividades de contramedidas desenvolvidas pela sociedade para amenização do stress por elas próprias criado.
Mais especificamente, as sociedades complexas hodiernas promoveram não apenas uma grande carga cumulativa de stress, a qual se contrabalançaria com atividades quaisquer de lazer, elas se desenvolveram de tal forma que impuseram padrões de vida altamente civilizados e tecnologizados - resultado da busca por satisfação de necessidades e geradores de tantas outras -, que por sua vez afastaram o homem residente nos grandes centros de grande parte daquilo que era ou que é inerente à sua constituição humana.
REFERÊNCIAS
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ELIAS, N; DUNNING E. A Busca da Excitação. Tradução Maria Manuela Almeida e Silva. Lisboa: DIFEL, 1992.
ELIAS, N. Introdução à Sociologia. Tradução Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1980.
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GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
HELLER, A; FEHÉR, F. A condição política pós-moderna. Tradução Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
AGATTI, A. P. R. Os Valores e os Fatos: o desafio em ciências humanas. São Paulo: IBRASA, 1997.
BURKE, P. História e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002.
MORAIS, R. de. Estudos de Filosofia da Cultura. São Paulo: Ed. Loyola, 1992.
MAGRO, C. Valor de Fato. In: VAITSMAN, J.; GIRARDI, S. (Org.). A Ciência e seus Impasses: debates e tendências em filosofia, ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p. 93-108.
José Roberto Herrera Cantorani*
Constantino Ribeiro de Oliveira Jr.**
(Brasil)
*Mestrando em Ciências Sociais Aplicadas - UEPG;
Integrante do Centro de Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade
UFPR, Grupo de Pesquisa Esporte, Lazer e Sociedade - UEPG e
Ciências Sociais e Interdisciplinaridade - UEPG;
Administrador da lista Sociologia do Esporte do CEV (cevsocio).
**Doutor em Educação Física - UNICAMP;
Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa; Professor do
Programa de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas - UEPG.
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