JIMENNA ROCHA CORDEIRO GUEDES
INTRODUÇÃO
Talvez não haja na história conceito tão
estudado, debatido e tão pouco conclusivo, ou de conclusões tão amplas e
diferenciadas como o da liberdade. Porém, através de uma revisão da literatura
sobre o tema, o conceito parece ganhar contornos mais ou menos homogêneos
quando analisados sobre o prisma de uma conjuntura histórica específica.
Ora, não seria a liberdade uma só? Um
valor nato e inerente ao ser humano? Não nasce todo homem livre como reconhecem
grande parte, ou todas, as cartas políticas atuais? Os diversos matizes que o
conceito de liberdade apresenta na literatura e na história parece relativizar
esta idéia e delimitá-la entre os contornos da chamada era Moderna e do
pensamento moderno. Será, portanto, a liberdade uma construção calcada em paradigmas
de uma época e do pensamento atinente a esta?
O estudo buscará tratar a liberdade
através da história, perscrutando seus alicerces no que convencionaremos chamar
de liberdade pré-moderna (liberdade dos antigos e do medievo) bem como na
Modernidade. Ainda, buscando arrematar o estudo da liberdade trazendo-o para os
dias presentes, analisaremos a crise deste termo associada à crise da
modernidade e ao início da chamada era pós-moderna.
1. A LIBERDADE ANTE OS PARADIGMAS DA ERA
PRÉ-MODERNA
Para refletirmos sobre a diferença entre
a liberdade dos modernos e às liberdades prévias a estes, essencial a remissão
ao discurso de Benjamin Constant “Da liberdade dos antigos comparada à dos
modernos”. Em respeito à liberdade dos antigos, afirma Constant:
“Esta última consistia em exercer
coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na
praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados
de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar contas, os
atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo,
em acusá-los de delitos, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo
que consistia nisso o que os antigos chamavam de liberdade, eles admitiam, como
compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo.”
(1985, p. 11)
Conclui-se da passagem citada que para
os antigos a liberdade era exercida através da política, isto é, através do
exercício do direito coletivo da cidadania (PECORA, 2004, p. 8). Os filósofos da antiguidade clássica não
chegaram a relacionar liberdade com a noção subjetiva de voluntariedade
individual nos atos dos seres humanos, “porque a liberdade antiga resulta da
organização da comunidade política, o todo (a comunidade) é maior e mais
relevante que a parte (o indivíduo).” (LAFER, 1997, pg. 17).
Obras de filósofos gregos como Platão e
Aristóteles denotam que naquelas sociedades não se valorizava a individualidade
para a auto-realização ou alcance da felicidade (eudaimonia)[1]. As verdades se
manifestavam através do Estado e a busca pela felicidade se dava através dele e
esse era o seu fim. Sábio era aquele que alcançava a compreensão de uma
determinada verdade universal, isto é, da verdade do Estado, que refletia os
modos das classes altas.
Os pensamentos dos romanos se afinavam
com aqueles atinentes à liberdade grega, já que, para ambos ela significava
igualdade política, o direito de participação e manejo de um sistema político
(PATTERSON, 1993, p. 309-310). O pensamento romano à época se coadunava com
aquela verdade universal e natural vista na Grécia, “la mentalidad romana de
clase alta consideraba, naturalmente, que el modo romano era el modo de la
razón” (PATTERSON, 1993, p. 365) criando um credo interior que estava em plena
harmonia com o credo político da elite republicana de Roma.[2] É assim que a
liberdade da antiguidade não passa por um projeto pessoal de auto-emancipação,
mas como um projeto do Estado em busca do que nele se entende por felicidade.
Como bem afirma Pecora, a existência individual é totalmente resolvida na
existência política e em um mundo onde a política é tudo a liberdade que lhe
interessa é a liberdade política (2004, p. 8).
Esta conclusão encontra guarida nas obras de Platão e a Aristóteles
quando se enfatiza que o indivíduo não pode visar outro objetivo de vida se não
o que lhe é oferecido como tal. (GIGON, 2003).
Vê-se, porém, que a liberdade dos
romanos, mesmo que em princípio, similar a dos gregos sofreu modificações de
acordo com seus períodos históricos e com a emancipação de seu império.
CONSTANT enumera três razões preponderantes para o delineamento da compreensão
de liberdade dos antigos: a) a pequena extensão das repúblicas antigas que
permitia a efetiva participação ativa e constante do poder político; b) a
guerra em contraposição ao comércio como meio de se possuir o que se deseja
incitando o espírito de comunidade e de seu fortalecimento para a autodefesa,
desembocando ainda na escravatura; c) a escravatura que permitia aos cidadãos
antigos a deliberação efetiva em praça pública conjuntamente com a guerra já
que esta permitia momento de ócio, posto que não era uma ocupação contínua como
o trabalho (1985, p. 12-15). Estas três razões que influenciaram o delinear da
concepção antiga de liberdade foram desaparecendo com o decorrer da história de
Roma e com isto, o conceito de liberdade começou a passar por uma
transformação.
O Império romano é um elo bastante
importante para o salto da antiguidade para o medievo e para a compreensão do
fenômeno do individualismo e da construção do conceito moderno de liberdade. A
expansão territorial e a forma como esta influiu na questão da guerra, da
escravidão (em grande escala) transformaram completamente a estrutura comunal
tradicional da Itália romana (PATTERSON, 1993, p. 317). O alargamento e manutenção do Império Romano
através não só das guerras como da concessão aparentemente generosa da
cidadania aos estrangeiros gerou um verdadeiro afrouxamento dos laços
comunitários, repercutindo não só na impossibilidade de um exercício direto da
liberdade cívica para a maioria dos romanos, bem como numa relativização do que
é ser cidadão: ser cidadão efetivamente era ser etnicamente romano, isto é,
pertencer à linhagem dos membros nativos, enquanto que para aqueles que eram
descendentes de escravos não havia acesso à “democracia”. (PATTERSON, 1993, p.
318-320).
O impedimento de participação nos
assuntos cívicos, bem como as concessões que o Império fazia a esses homens
livres e não cidadãos, primeiramente quanto ao alargamento da cidadania, depois
quanto a temas eminentemente econômicos, permitia mantê-los sem fome e
entretidos. Esse distanciamento dos assuntos de Estado e esta liberdade de
gerir suas vidas particulares afastaram a plebe do interesse pela democracia
participativa, e mais, fez com que esta se apresentasse aos seus olhos como
algo a ser temido, uma ameaça à sua segurança econômica[3]. O alheamento destes
cidadãos foi o gérmen para o surgimento da aspiração por uma liberdade pessoal.
As mudanças sociais do Império Romano e
o desmantelamento daquelas características citadas por Constant marcam o fim do
que se entende por liberdade antiga e o início da fase de transição para a
liberdade moderna. A característica mais marcante desta transição é o
crescimento do sentimento individualista e seu atrelamento ao conceito de
liberdade. A análise de Patterson da conjuntura do desenvolvimento do
individualismo é ilustrativa:
“Esta extraordinaria realidad
sociodemografica desenpeña um rol decisivo em la historia de la libertad.
Porque por primera vez nos encontramos com uma sociedad em la cual la vasta
mayoría de las personas libres estimaba el valor de la libertad personal em su
sentido más literal: el de la liberación de la esclavitud”. (1993, p. 329)
Outro ponto relevante nesta nova
mentalidade romana e nesta nova concepção de liberdade é a questão do cristianismo.
O cristianismo reforçava esta idéia de liberdade individual como contraponto à
escravidão. Segundo CARLYLE, referenciando Santo Ambrósio: “el cuerpo puede ser
esclavizado, pero el alma es libre. El esclabo puede ser más libre que el amo;
es el pecado lo que hace a um hombre ser verdaderamente esclabo.” (1982, p.
17), Todas as versões do cristianismo primitivo, também a dominante de Paulo, se preocupavam com o
valor da liberdade e o relacionavam com a liberdade individual, marcadamente em
sua forma mais concreta: na liberação da escravidão (PATTERSON, 1993, p. 429).
A
difusão extraordinária do cristianismo como um dos pontos de modificação da
mentalidade romana se justifica pela satisfação que esta religião trazia a
certas necessidades básicas de cunho social, psicológico e espiritual a muitos
dos povos do Império. (PATTERSON, 1993, p. 401), necessidades como as de
salvação através da submissão apenas a Deus, o que desemboca na concepção de
liberdade em contraposição à submissão ou escravidão aos homens, além da
purificação de todos que se convertessem, mesmo os marginais e impuros do
mundo, devido aos seus princípios universalistas e igualitários (PATTERSON,
1993, p. 421). É esta submissão de todos indistintamente a Deus que dota o
cristianismo dos princípios de igualdade dos homens e, portanto, da sua
liberdade natural (CARLYLE, 1982, p. 16).
Os cristãos ofereciam a liberdade como
possibilidade de redenção eterna àqueles que vieram de uma história de
escravidão e que estavam completamente dissociados da liberdade cívica. A
liberdade cristã se mostrava como a única alternativa, além de, conforme
Patterson:
“[...] um consuelo mientras esperamos y
permite que la humanidad adquiera conciencia de esa libertad más alta – la
libertad soberana de Dios, proxima y distante em el tuiempo y em el ser-.
Apenas si se la puede captar, pero es posible gozarse em el mero conocimiento
de su existência y proximidad [...] la humanidad deberá instalarse entonces,
hasta la liberación final de la segunda venida, em la libertad de los gálatas y
utilizarla como bandera em la lucha contra el reesclavizamiento y como impulso
a la obediencia de uma fe superior que es la esperanza de la más alta libertad
que se há garantizado y que significará, cuando llegue, no la rendición, sino
la unión perfecta com Diós”. (1993, p. 465)
Foi este o pensamento do final da época
Antiga, fruto das contradições internas do Império Romano que somadas às
investidas dos povos bárbaros culminou com o fim daquele império e com o início
de uma nova era: a Medieval.
Ao destacarmos o surgimento do
individualismo através das concepções cristãs e o declínio da liberdade antiga
pode parecer que a concepção da autoridade da comunidade havia desaparecido em
definitivo e este não é o caso. O instituto da servidão se assemelhava muito ao
da escravidão e esta ainda estava presente e de forma central na psicologia da
classe proprietária e na de todos os homens humildes e pobres. O servo “se
caracterizaba por los dos atributos propios del esclavo, la degradación y la
impotencia” (PATTERSON, 1993, p. 484). A diferença que se estabeleceu entre a
servidão e a escravidão era a de que, de fato, o cristianismo trouxe um
espírito de fraternidade entre senhor e servo, fazendo com que este não fosse
desprezado como o escravo, eles “eran ‘hermanos en cristo’, gozaban juntos de
uma franquicia em el mundo real, tal como Cristo se las había concedido em el
mundo espiritual;” (PATTERSON, 1993, p. 479). Ainda se podia dizer que o servo
era um membro da comunidade e tinha direitos natais aos quais os senhores
estavam dispostos a respeitar, porém não tinha poder sobre a sua pessoa já que
era possuído por outra, tanto que poderia ser vendido. (PATTERSON, 1993, p.
482)
Não se pode ainda falar num
individualismo que desemboque numa liberdade individual do servo, mas numa
liberdade que se funda nas honrarias e no poder. No inglês medieval, liberdade significava
isenção, esta significava privilégio, “ser livre queria dizer ter acesso a
direitos exclusivos – de uma corporação, de uma cidade, de um estado. Os que
eram assim isentos e privilegiados entravam nas fileiras dos nobres e dos
ilustres” (BAUMAN, 1989, p. 22).
Havia sim certo reconhecimento da
individualidade através dos preceitos cristãos, porém não a idéia de liberdade
individual e universal moderna. A tese
de Carlyle de que já na Idade Média havia uma supremacia do direito, direito
este que era o costume e que se fundava na comunidade e num direito natural
provindo de Deus (1982, p. 31) deve ser vista com cuidado. Mesmo que a
autoridade dos reis fosse limitada por certo consentimento da comunidade e das
leis divinas, o reconhecimento da individualidade e, portanto, dos direitos
individuais dos servos não se dava efetivamente já que estes não tinham o poder
de autodeterminação. Resgatando os ensinamentos do Apóstolo Paulo, poderíamos
falar que o servo era apenas indivíduo na relação com Deus (DUMONT, p.39).
Segundo Bauman, no medievo, o controle e a ordem social era a regra dos
senhores feudais ou das corporações locais ou ocupacionais, confiava-se sem
saber e pensar nestes métodos e meios para seguir o seu modo de vida, a visão
de uma pessoa independente gerava certa ansiedade, “a condição de não ter dono
deve ter sido, sem dúvida, alarmante: em primeiro lugar por causa da dificuldade
de a controlar e, em segundo, porque apresentava a ordem social como algo que
deve ser conscientemente cuidado e que não se conserva por si própria” (1989,
p. 55). Definitivamente o homem não era
auto-suficiente, auto-determinado, não se via completo em si mesmo, com o total
domínio das circunstâncias da sua vida.
Esta mudança de comportamento começou a
surgir com as constantes lutas travadas em busca desta liberdade que se
confundia com privilégios, isto é, pela ampliação de privilégios frente ao rei.
Em princípio esta liberdade era dada a uma categoria pequena de súditos ricos e
poderosos, porém, a partir do século XII, este privilégio começou a ser
concedido não só a indivíduos ou a linhagens familiares, mas a coletividades,
particularmente a cidades. A emancipação destas cidades em relação aos poderes
dos barões locais quebrou o elo mais importante entre riqueza e direitos sobre
as pessoas (BAUMAN, 1989, p. 57-58). Neste sentido, Constant afirma que o
comércio dá à propriedade a qualidade da circulação, e afirma que sem esta a
propriedade não é mais que usufruto, já que pode sempre influir sobre ela, a
circulação é um obstáculo que torna a propriedade invisível a ação do poder
social, “Os efeitos do comércio estendem-se ainda mais longe; não somente ele
emancipa os indivíduos, mas criando o crédito, torna a autoridade dependente”
(1985, p. 22). O florescimento da vida urbana, a valorização do comércio e a
quebra que este trouxe nas relações de dependência entre homem e terra foi a
ponte definitiva para o individualismo, a racionalidade e a configuração da
liberdade moderna.
2. A LIBERDADE ANTE OS PARADIGMAS DA
MODERNIDADE E DE SUA CRISE
A noção de liberdade individual moderna
já começa a se delimitar na Idade Média, como visto, com a ascensão do
cristianismo, bem como com o embrião do que se chama hoje de “direito natural”
com concepções como as de São Tomás de Aquino do homem titular de direitos
natos, limitadores do exercício do poder de outros sobre si, derivados de sua
própria racionalidade (SARLET, p. 44). A concepção jusnatural e contratualista
influenciou bastante os principais pensadores da modernidade, principalmente
aqueles que sedimentaram seus pilares, como Hobbes, Lock e Rousseau. Esta
influência se fez sentir no papel do Estado da sociedade, fazendo com que ambos
sejam forjados nos moldes das propriedades e qualidades inerentes indivíduo,
considerado como ser autônomo e independente de todo e qualquer vínculo social
e político (Dumont, 1985, p. 87). O jusnaturalismo traz o homem individual para
o centro do mundo e o contratualismo alça a sua vontade à fonte criadora da
sociedade, do Estado e do direito.
Como se denota, ser indivíduo moderno é
dispor de certa margem de liberdade de agir e esta liberdade traz tensão com a
comunidade (BAUMAN, 2001, p. 40). A pré-modernidade não traz o problema da
liberdade nestes termos, já que não se podia falar em individualismo, tornando
este problema irrelevante. Somente com a modernidade é que a análise da
liberdade salta aos olhos, devido à sua contradição entre liberdade liberal e
comunidade.
Também, um dos grandes pontos da
Modernidade foi o seu sentido de propriedade, propriedade sem vínculos sociais,
que permitiu maior autonomia de agir dos homens (pelo menos em aparência ou aos
que a pertenciam). A fusão entre
liberdade individual e propriedade livre possibilitou a autodeterminação do homem,
ser livre é, para o moderno, a independência na vida privada, seu objetivo é “a
segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias
concedidas pelas instituições a esses privilégios” (CONSTANT, 1985, p. 16). A
comunhão entre liberdade individual e propriedade e a tensão destas com a
comunidade apresentam-se como pontos chave da Idade Moderna.
Esta tensão foi captada por alguns
pensadores que encampam a tese de que a Idade Moderna foi um projeto articulado
em alguns paradigmas e que sua crise se dá pelo descumprimento das propostas
destes paradigmas e das conseqüências nefastas que o tipo de racionalidade
adotada naquela época culminou[4]. Destacaremos análise feita por Boaventura de
Sousa Santos.
Para Santos, a Modernidade se funda em um
projeto sócio-cultural que se assenta em dois pilares fundamentais: o da
regulação e o da emancipação. Cada um deles se constitui por três princípios. O
pilar da regulação funda-se pelo princípio do Estado, principalmente atribuído
a Hobbes; pelo princípio do mercado, visto em Locke; pelo princípio da
comunidade que remonta à filosofia política de Rousseau. Já o pilar da
emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a ético-expressiva
da arte e da literatura; a moral-prática da ética e do direito; a
cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. (1999, p. 77)
O pilar da emancipação se relaciona à
questão da racionalidade científica e auto-suficiente do homem. Agora o
conhecimento se baseava no empirismo e a verdade era toda aquela que poderia
ser verificada, num verdadeiro retorno à lógica cartesiana (COSTA, 2005, p. 3).
Já o pilar da regulação coaduna-se com a crença de liberdade individual dos
modernos, ser livre é, para eles, a independência na vida privada, seu objetivo
é “a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias
concedidas pelas instituições a esses privilégios” (CONSTANT, 1985, p. 16). A
sociedade moderna não acredita que possa estar em segurança sem tomar medidas
de orientação e vigilância da conduta humana, isto é, sem medidas de controle
social (BAUMAN, 1989, p. 23)
O princípio do Estado surge da
necessidade de adequação à mudança da soberania medieval que emergia do
apossamento da terra para o poder sobre o corpo e os seus atos, isto é, de um
poder disciplinar (FERRAZ JR., 2009, p. 9). A necessidade de um poder soberano
como algo que constitui a comunidade política e garanta as relações sociais
explica a existência de um Estado. Hobbes percebeu esta necessidade e a expôs
com genialidade na figura do Leviatã. O Leviatã era o elo que mantinha a
liberdade individual na comunidade, tem o dever de zelar pela comodidade e
segurança dos súditos, porém, tem o monopólio de ditar a ordem (FERRAZ JR.,
2009, p. 10).
O princípio do mercado remonta àquela
liberação do homem pelo comércio a partir da quebra de vínculo entre este e a
propriedade. Podemos extrair do discurso de Benjamin Constant esse apego ao
liberalismo de mercado, cujo pai é Locke, também como uma faceta da liberdade
pessoal: “O comércio inspira aos homens um forte amor pela independência
individual. O comércio atende a suas necessidades, satisfaz seus desejos, sem a
intervenção da autoridade. Esta intervenção é quase sempre, e não sei por que
digo quase, esta intervenção é sempre incômoda” (1985, p.14).
O princípio da comunidade, baseado em
Rousseau, que é tomado como autoridade do corpo social pela liberdade de todos
(CONSTANT, 1985, p. 17), ou uma comunidade concreta de cidadãos que baseavam a
soberania do povo (SANTOS, 1999, p. 81), não tinha o sentido medieval de partir
do todo social, mas partia primeiro do indivíduo que se punha em sociedade
através de um contrato. Segundo Rousseau: "Uma vez que homem nenhum possui
uma autoridade natural sobre o seu semelhante, e pois que a força não produz
nenhum direito, restam, pois, as convenções como base de toda a autoridade
legítima entre os homens” (ROUSSEAU, p. 15). O contratualismo coloca a vontade
individual como o cerne, transformando o Estado, e conseqüentemente o direito,
apenas no meio de consecução desta.
Os princípios dos dois pilares da
Modernidade articulam-se, visando maximizar as potencialidades de cada um
deles, porém, embora as lógicas de emancipação racional visem, conjuntamente,
orientar a vida prática das pessoas, cada uma delas se relaciona de modo
privilegiado com algum pilar da regulação: a racionalidade estético-expressiva
com o princípio da comunidade, em que as idéias de identidade e comunhão se
condensam e se relacionam à contemplação estética; a racionalidade
moral-prática com o princípio do Estado, pois a este compete definir e fazer
cumprir um mínimo ético para o monopólio da produção e distribuição do direito;
a racionalidade cognitivo-instrumental com o princípio do mercado, porque nele
se condensam idéias de individualidade e concorrência, centrais ao
desenvolvimento da técnica e pela conversão da ciência numa força produtiva.
(SANTOS, 1999, p. 77). Santos afirma que a promessa mais dificultosa foi a de
vincular o pilar da regulação ao pilar da emancipação de forma a concretizar e
conciliar a vida coletiva e a individual (1999, p. 78).
Para Santos, o projeto da Modernidade
constitui-se entre o século XVI e XVIII, mas só a partir do século XVIII é que
se inicia o teste do cumprimento histórico das promessas do modelo e da
racionalidade moderna, com a emergência do capitalismo enquanto modo de
produção dominante nos países da Europa. O trajeto histórico da Modernidade
está, pois, intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo (1999, p.
78-79). Santos distingue no capitalismo três grandes períodos: o do capitalismo
liberal, vigente em todo século XIX; o do capitalismo organizado, do fim do
século XIX até as primeiras décadas após a Segunda Guerra; o capitalismo
desorganizado, chamado por alguns de capitalismo financeiro ou monopolista de
Estado, que se situa desde o fim da década de sessenta até os dias atuais.
(SANTOS, 1999, p. 79). O estudo destes períodos do capitalismo busca definir a
trajetória do projeto sócio-cultural da modernidade, visando ainda demonstrar a
atual crise dos paradigmas modernos que certamente influenciam a compreensão da
liberdade.
No período do capitalismo liberal,
observa-se que o projeto de desenvolvimento harmonioso entre os princípios do
Estado, mercado e da comunidade colapsam diante do superdesenvolvimento do princípio
do mercado, na atrofia do da comunidade e no desenvolvimento ambíguo do
princípio do Estado devido à pressão desigual dos dois princípios anteriores. O
desenvolvimento do mercado está patente conforme verificamos no crescimento
vertiginoso da industrialização, das cidades industriais e comerciais, bem como
pela supervalorização do laissez-faire como tradução da filosofia política
liberal. Em contrapartida, a comunidade rousseauniana, de cidadãos
concretamente dotados de soberania, foi reduzida a dois componentes abstratos:
a sociedade civil, concebida como agregação competitiva de interesses
particulares e relegada à esfera pública; o indivíduo, em tese livre e igual,
visto como suporte básico da esfera privada e da sociedade civil, e, portanto,
sobre esta tinha primazia. “Foi este conceito empobrecido de sociedade civil
que passou a ser oposto ao Estado, dando assim origem ao que se considera ser o
maior dualismo do pensamento político moderno, o dualismo Estado-sociedade
civil” (SANTOS, 1999, p. 81).
Já expusemos a tese de Constant de que a
intervenção estatal é sempre maléfica e que o Estado deve garantir (intervir)
para que a iniciativa individual se desenvolva. Vê-se ai uma tese
contraditória, já que coloca o Estado numa posição ambígua posto que o
laissez-faire se concretiza, justamente, nas ações ou omissões (intervenções)
estatais para configurar-se no Estado mínimo. (SANTOS, 1999, p. 81) Esta
contradição aparece, inclusive, em seu discurso: “O perigo da liberdade moderna
está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de
interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de
participar do poder político.” (1985, p. 23).
Já no campo da razão (o pilar da
emancipação), no domínio cognitivo-instrumental, viu-se um desenvolvimento
espetacular da ciência e sua conversão gradual em força produtiva e,
conseqüentemente, a sua vinculação ao mercado; no da moral-prática a
autonomização e especialização manifestaram-se na elaboração e consolidação da
“microética liberal” de responsabilidade moral exclusivamente referida ao
indivíduo, além de manifestarem-se no formalismo jurídico extremo dos
Pandectistas alemães, transformado em política jurídica hegemônica através da
codificação, cuja expressão é o Code Civil napoleônico de 1804; no domínio
ético-expressivo, a autonomização e especialização traduzem-se no crescente
elitismo da cultura. (SANTOS, 1999, p. 82)
No segundo período, o do capitalismo
organizado, procurou-se distinguir o que era possível e impossível de se
realizar no projeto da modernidade dentro de um contexto capitalista (SANTOS,
1999, p. 83). Estas constatações relacionadas à lógica cartesiana da
verificação e ao positivismo de Comte instauraram a crença de que o possível
para o capitalismo era a única solução viável, gerando uma expansão contínua,
no campo da regulação, do princípio do mercado. Em decorrência desta expansão,
expandiu-se também o proletariado e houve uma verdadeira redefinição do
princípio da comunidade através do alargamento do sufrágio universal (inscrito
na lógica abstrata da sociedade civil e do cidadão formalmente livre e igual),
a rematerialização da comunidade através das práticas e políticas de classe,
através de sindicatos e associações patronais e da negociação coletiva. Já o
Estado articulou-se cada vez mais com o mercado, através da regulamentação
deste e da ligação dos aparelhos estatais aos grandes monopólios, na condução
de guerras e de outras formas de controle imperialista, bem como na crescente
intervenção na regulação e institucionalização dos conflitos entre capital e
trabalho. A articulação estatal com a comunidade também se adensou, conforme o
surgimento da legislação social, na gestão do espaço, do consumo, saúde,
educação, enfim, na criação do Estado-providência. (SANTOS, 1999, p. 84-85)
O pilar da emancipação também sofreu
influências deste processo de concentração do que era possível e exclusão do
impossível para o capitalismo na consecução do projeto da modernidade. Assim, o
pilar da emancipação tornou-se cada vez mais semelhante ao da regulação, num
processo de convergência e interpenetração que Gramsci caracterizou através do
conceito de hegemonia. Em relação à racionalidade moral-prática, o Estado
penetrou mais profundamente na sociedade através de soluções legislativas,
institucionais e burocráticas, fomentando assim a obediência passiva em
substituição da mobilização ativa, consolidou-se também “uma ciência jurídica
dogmática e formalista, pseudamente isenta de preferências axiológicas e
políticas, lapidarmente formulada na teoria pura do direito de kelsen”. Esta
racionalidade é tipicamente cognitivo-instrumental, visando um ethos científico
ascético e autônomo culminando num “’esquecimento do ser’ heideggeriano”,
remetendo a processos ditatoriais, “de policiamento despótico de fronteiras, da
liquidação sumária de transgressões”, vide as experiências do fascismo e
estalinismo. (SANTOS, 1999, p. 86)
O terceiro e atual período, chamado de
capitalismo desorganizado, é visto como época em que a compreensão do
descumprimento de muitos dos projetos da modernidade se avultou, gerando assim
um processo de análise, crítica e revisão do mesmo, numa desestruturação dos
paradigmas vigentes, uma fase de transição para, quem sabe, uma nova forma de
organização (SANTOS, 1999, p. 87). Esta fase transitória, de desconstrução e
incertezas é chamada de pós-modernidade.
No campo da regulação, o princípio do
mercado ganhou pujança sem precedentes, extravasando o campo econômico e
colonizando tanto o princípio do Estado, como o da comunidade, processo este
possibilitado pelo credo neoliberal. Exemplos são o crescimento do mercado
mundial com suas empresas multinacionais, transnacionalizando a economia e
tornando o papel do Estado neste sentido como quase obsoleto; os mecanismos
corporativos de regulação dos conflitos entre capital e trabalho, precarizando
a relação salarial; a flexibilização e automação dos processos produtivos,
permitindo a industrialização dependente do terceiro mundo... (SANTOS, 1999, p.
88). O princípio da comunidade parece se enfraquecer de novo, devido à
estratificação cada vez maior e mais distinta das classes trabalhadoras e do
aumento da classe de serviços, inviabilizando as organizações operárias e
enfraquecendo seu poder negocial face ao capital e ao Estado; surgem novas
práticas de mobilização social que se focam mais nas diferenças individuais e
de formas de vida, como os movimentos sociais feministas, anti-racismo, bem
como de reivindicações pós-materialistas como a ecologia e o pacifismo (SANTOS,
1999, p. 88).
Quanto ao pilar da emancipação,
denotou-se um processo de esgotamento histórico com a crise global da idéia de
revolução social e de sua domesticação em função das exigências cada vez mais
profundas da regulação social. Ao nível da racionalidade cognitivo-instrumental
“O compromisso industrial-militar do desenvolvimento científico-tecnológico e
os perigos da proliferação nuclear e da catástrofe ecológica daí resultantes
são sintomas bastantes do cumprimento excessivo e, portanto, irracional da
racionalidade instrumental da modernidade.”. Esta “irracionalidade” da
modernidade aliada às receitas neoliberais se transforma numa lógica de
dominação e regulação em nível mundial, como demonstra o imperialismo
norte-americano legitimado por esta lógica que via no modelo de desenvolvimento
americano o modelo mais racional e que “oculta o facto decisivo de que quando
este modelo foi seguido nos países centrais não havia que contar com os
interesses hegemônicos de países mais desenvolvidos do que eles.” (SANTOS,
1999, p. 90). As conseqüências inevitáveis desta modernização
científico-tecnológica e neoliberal vistas através do crescimento desenfreado
da concentração de riqueza e da exclusão social são não só o agravamento das
injustiças sociais, como também a devastação ecológica, comprometendo a
qualidade a sustentabilidade da vida no planeta (SANTOS, 1999, p. 91).
Esta racionalidade
cognitivo-instrumental interferiu com seus efeitos na racionalidade
moral-prática que confinou-nos numa ética individualista, “uma microética que
nos impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por acontecimentos
globais, como a catástrofe nuclear ou ecológica, em que todos, mas ninguém
individualizadamente parece poder ser responsabilizado” (SANTOS, 1999, p. 91).
Estas conseqüências incontestáveis do modelo da modernidade demonstram a falha
na execução do seu projeto e sua inadequação aos problemas dos tempos atuais. A
liberdade individualista, a desfragmentação da comunidade, a visão utilitarista
da vida e dos objetos, propiciada pela supervalorização do princípio do
mercado, todos estes fatores construíram uma visão de liberdade como opção de
escolha entre os bens de vida que o capitalismo nos oferecia, entre as opções
relacionadas aos objetivos da atividade econômica. Os acontecimentos históricos
e naturais da atualidade demonstram que esta lógica é autofágica, já que não
podemos controlar seus resultados (que vem se demonstrando devastadores),
tampouco saná-los, revertê-los ou atribuir-lhes responsabilidades,
remetendo-nos à “sociedade de risco” de Ulrich Beck.
Este atrelamento do valor da liberdade
ao modelo capitalista é muito bem expresso por Bauman, com base nos
ensinamentos de Mike Emmison. Bauman explicita que o capitalismo é uma situação
onde as funções de qualquer sociedade humana, designadamente a satisfação das
suas necessidades através da troca com a natureza e com outras pessoas, são
executadas pela aplicação de cálculos meios-fins à questão da escolha entre
recursos escassos e limitados. O capitalismo
proporciona as condições para uma escolha “mais livre”, extirpando a atividade
econômica de todas as outras instituições ou funções sociais, isto é: “a
produção e distribuição estavam sujeitas a deveres de parentesco, a lealdades
comunais, a solidariedades corporativas, rituais religiosos ou estratificação
hierárquica dos padrões de vida” (1989, p. 73), assim, todas as normas
extrínsecas se tornaram irrelevantes para o capital e houve a liberação da
esfera econômica para a regra do calculo meios-fins e para o comportamento da
livre escolha. “Mas a escolha e o cálculo meio-fins (nomeadamente o
comportamento motivado, intencional e controlado pela razão) são as
características essenciais e definidoras da liberdade conforme é entendida na
sociedade moderna.” (1989, p. 73). É neste ponto que a liberdade se torna uma
necessidade ao capitalismo, sem ela o objetivo da atividade econômica não pode
ser cumprido, porém, estes objetivos realmente se assemelham com os da
humanidade?
Este conceito de liberdade remete-se com
exatidão à racionalidade de que tantos falamos, desprovida de qualquer carga
valorativa, empiricamente demonstrável, utilitarista e que prega a lógica da
maior eficiência, em que imiscuir outras considerações não relativas ao capital
seria, neste ponto de vista, um meio menos eficiente, é esta racionalização,
também denotada por Max Weber e por Simmel, que visa meios e fins, que acaba
por instrumentalizar toda a vida humana , assim:
“O ser humano, nesse movimento de
eliminação da ambivalência, foi tomado como objeto a ser moldado pela
racionalidade científica e técnica, e também pela racionalidade legislativa.
Assim como o mundo dos objetos manipulados pela ciência e pela técnica, a
sociedade passou a ser tomada como objeto de manipulação técnica. A engenharia
social foi a transformação do ser humano num meio racionalmente controlável. A
humanidade foi tomada, durante a modernidade sólida, como objeto de controle,
como instrumento ajustável aos fins do projeto moderno”.( MOCELLIM, 2007, p.
113)
Na análise histórica de Santos ficou
patente que, dentre os princípios da modernidade, o da comunidade foi
secundarizado, o do Estado posto à disposição do mercado e este desenvolveu-se
ao extremo, tornando-se o fundamento da ordem social, política e econômica,
adequando a racionalidade à utilidade da sua expansão. Porém pergunta-se em que
se funda esta utilidade? O extremismo desta racionalidade nos trouxe
experiências desastrosas. A racionalidade moral-prática da ética e do direito,
ligada ao Estado, criou o nazi-facismo e nos conduziu ao extremo do positivismo
normativo que permitiu o holocausto; a racionalidade cognitivo-instrumental
relacionada mais especificamente ao mercado permitiu Chernobyl e a escassez,
extinção e piora de vários recursos naturais; a racionalidade ético-expressiva
permitiu a subjugação de culturas e o imperialismo... muitos são os fatores que
nos levam a crer, conforme Santos, que as conseqüências do projeto da
modernidade atreladas ao capitalismo foram mais acentuadamente um fator de
regulação em favor do capital do que de emancipação do homem.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar-se historicamente o conceito
de liberdade observa-se que seus contornos não se apresentam de forma imutável
como um dogma a ser reverenciado, mas sim de forma fluída. Diante desta fluidez
pode-se acusar a liberdade de ser um conceito vazio, que diante das
conveniências ou circunstâncias “ser livre” pode chegar a vir a “ser escravo” e
que na verdade o estudo em si não tem um objeto. Será então que um conceito
construído através de paradigmas históricos, filosóficos sociológicos sempre
poderão ser qualquer coisa? Ou seria, como disse Cecília Meireles, “a liberdade
é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e
ninguém que não entenda.”?
A construção histórica do conceito de
liberdade aqui apresentada não tem por ambição sustentar que este é um conceito
vazio, que mude ao sabor de convenções ou imposições, tampouco refutar a tese
de que a liberdade seja um valor natural, intrínseco ao ser humano. Refuta-se
sim a idéia de liberdade calcada em um jus-naturalismo imutável e acrítico. A
noção de direitos humanos e de liberdade aqui defendida constrói-se a partir
das mudanças sociais, mas também se lastreia pelo fortalecimento e ampliação de
valores e de ideais que reforcem uma existência humana digna e uma sociedade
solidária.
O conceito de liberdade não é como os
conceitos físicos, com qualidades definidas e estanques, é um conceito do campo
dos valores. Os valores como o belo, o justo, o igual ou o livre não podem ser
medidos por propriedades físicas ou unívocas, a tentativa de conhecer os
valores previamente a partir de propriedades estanques sempre será frustrada
por que o valor não é algo em si mesmo, mas é sim uma projeção sobre os
objetos. As categorias estanques destes objetos não lhes podem ser aplicáveis.
A liberdade, como todos os valores, podem sim ser reconhecida a partir de
racionamentos, constatações, necessidades, conjunturas, fatos... a liberdade
não pode ser vista como uma construção prévia de categorias imutáveis posto que
se esvazie, mas deve ser reforçado com as variações deste tempo sempre no
sentido de aumentar a autodeterminação da pessoa, sempre com o sentido de
realçar suas características lógicas que fazem com que o conceito de liberdade
surja com maior força frente às demandas e realidades mutáveis tanto do homem,
como da sociedade e da história.
Os pré-modernos, diante da sua
conjuntura, encaravam a liberdade como uma questão de titularidade: quem é
livre? A história então foi resolvendo esta questão e a Modernidade trouxe a
resposta da questão da titularidade da liberdade quando afirmou que todos têm o
direito de ser livres, porém, diante desta panacéia universal que abriu aos
homens horizontes tão vastos, a Modernidade não soube como cumprir a promessa
da liberdade universal de fato para todos e absteve-se à mera declaração. Hoje
as questões sobre a liberdade centram-se em uma pergunta: como ser livre?
A discussão não mais trata de valores
básicos como de escravidão ou submissão explícita de um ser humano a outro, mas
se põe de forma mais implícita e através de diversos melindres que a liberdade
universal carrega, que pode levar a situações de escravidão de fato, ou pior,
de total desvinculação social, em que até as responsabilidades dos senhores com
os escravos poderia seria preferível. A questão da liberdade moderna não parece
mais estar ligada às aptidões de alguns ou todos os seres humanos serem livres,
mas de efetivação de potencialidades para o exercício dessa liberdade universal
e virtual. Neste sentido, a mudança de paradigmas da liberdade não veio para
esvaziar o conceito de liberdade, mas para reforçá-lo e os constantes esforços
para compreendê-la, melhor delimitá-la e contextualizá-la não o invalidam, mas
o fortalecem como valor universal, cuja responsabilidade de manutenção cabe à
humanidade.
A análise dos pilares da modernidade
buscou perscrutar o modelo de sociedade idealizado por esta, o cumprimento
desse modelo, sua real face e seus déficits, para levantar sob que valores e
parâmetros o moderno encara a liberdade, quais são seus desafios, o que se
espera do “ser livre” e em que o projeto da modernidade falhou no seu
exercício.
A crise da modernidade e a conseqüente
contestação e descrença dos valores sociais servem de contexto para o grande
debate sobre a natureza, a validade e o conteúdo da liberdade e de todos os
demais valores. A discussão sobre valores não significa necessariamente seu
esvaziamento, mas pode significar muito mais seu aperfeiçoamento. É neste
momento que a liberdade deve ser discutida, já que é inegável ser um valor caro
ao ser humano e à sociedade, pois esteve presente nas preocupações dos homes
desde épocas imemoriais. A atual crise paradigmática que se convencionou chamar
de pós-modernidade é uma oportunidade para que se discuta os contornos da
liberdade nos parâmetros da sociedade atual e projeções para futuro. O momento
é de oportunidade para a construção de bases para um novo modelo de sociedade.
A informação, meditação e debate são elementos essenciais para que a liberdade
seja efetivamente uma construção social e não mais sirva como estrutura para a
manutenção do poder daqueles que efetivamente apresentam-se “mais livres”.
Referências bibliográficas:
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ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2007.
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perspectiva antropológica da sociedade moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993
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FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Estudos de
filosofia do direito – reflexões sobre o poder, a loberdade, a justiça e o
direito.. Ed. Atlas, São Paulo, 2009.
LAFER, Celso. O moderno e o antigo
conceito de liberdade. Ensaios sobre a liberdade. São Paulo, Ed. Perspectiva,
1980.
MOCELLIM, Alan. Simmel e Bauman:
modernidade e individualização. in EmTese, Vol. 4 n. 1 (1),
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Alice – o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Ed. Cortez, 1995.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos
direitos fundamentais. 4 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004.
Notas:
[1] A filosofia do Estado de Platão e de
Aristóteles defendeu a tese de que é dever do Estado cuidar da eudaimonia dos
cidadãos. Ele precisa adotar as medidas e criar instituições que possibilitem
ao indivíduo alcançar o fim que lhe foi estabelecido pela natureza. Assim o
Estado torna-se o educador e, já que o comportamento do homem a partir da
infância, em todas as esferas da vida, pode influir favorável ou
desfavoravelmente em sua aspiração à eudaimonia, o resultado é que o Estado tem
o direito de, orientando e regulamentando, intervir em toda esfera da vida.
Percebemos claramente o quanto isto é inquietante. Em Platão, na República e
ainda mais nas Leis, e também em Aristóteles, a legislação organiza
literalmente todas as relações da vida, desde a geração da criança, passando
pelo cuidado com o lactente, a instrução dos jovens, chegando até as ocupações
da velhice. Sob esse ponto de vista, também é prescrito aos poetas o que devem
criar e, aos professores, que disciplinas devem lecionar. Quase não sobra um
espaço no qual o indivíduo possa mover-se livremente. São conhecidas de todos
as censuras que, nos tempos modernos e mais recentemente, a partir disso, têm
sido levantadas contra a construção platônica do Estado. (GIGON, 2003)
[2] “El sabio, que vive conforme a la naturaleza,
reconciliaba lo divino que había en el con lo divino del cosmos. De este modo
era libre, ya que su conformidad con el cosmos era exactamente lo que él mismo,
ejerciendo la razón, habría deseado.” (PATTERSON, 1993, p. 365).
[3] Después de la horrible experiencia
de la república tardia, (os plebeus) concluyeron que la libertad cívica, tal
como la praticaba la clase gobernante, era una obvia amenaza a la libertad
personal que tanto estimaban. El trato implícito que efectuaron con Augusto y
los emperadores seguientes fue la aceptación de la version orgánica de la
libertad soberana, que proclamaban los emperadores, a cambio del apoyo imperial
de la libertad personal y de la seguridad. (PATTERSON, 1991, p. 322)
[4] Dentre destes autores podemos citar
Bauman, que dividia a história em: pré-modernidade (modernidade sólida) época
do vigor da idéia do projeto moderno, isto é: de controle do mundo pela razão
no intuito de tornar o mundo melhor através do ordenamento racional e técnico a
partir de dois elementos de destaque, o Estado e a ciência; em pós-modernidade
(modernidade líquida) caracterizada pela liquidez e mobilidade das relações e
no exarcebamento da individualidade (MOCELLIN, 2007, p.104-105). Ainda podemos
citar o pensamento de Hannah Arendt, que pauta a era moderna em três grandes
marcos: a descoberta da América que possibilitou exploração de toda a Terra; a
Reforma que, desencadeou a expropriação das propriedades eclesiásticas e
monásticas, e o duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza
social; a invenção do telescópio que propiciou o desenvolvimento da ciência sob
uma perspectiva que considera a natureza da Terra do ponto de vista do
universo. (ARENDT, 2007, p. 260).
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