Pages

domingo, 15 de abril de 2012

O NARIZ

Luis Fernando Veríssimo


Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sombrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.- O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos. - Isso o quê? - Esse nariz. - Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei. - Logo você, papai... Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se. - Tire esse negócio. - Por quê? - Brincadeira tem hora. - Mas isto não é brincadeira. Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou. - Aonde é que você vai? - Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório. - Mas com esse nariz? - Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque é um nariz... - Pense nos vizinhos. Pense nos cliente. Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo o senhor, doutor...”) fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas. - Ele enlouqueceu? - Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi ele assim. Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar. - Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher. - Vou. Aliás, não vou mais tirar esse nariz. - Mas, por quê? - Por quê não? Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.
- Papai... - Sim, minha filha. - Podemos conversar? - Claro que podemos. - É sobre esse nariz... - O meu nariz outra vez? Mas vocês só pensam nisso? - Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note? - O nariz é meu e vou continuar a usar. - Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social. - Não tem porque não quer... - Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço? - Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença. - Se não faz nenhuma diferença, então por que usar? - Se não faz diferença, porque não usar? - Mas, mas... - Minha filha... - Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai! A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra. - Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho... - Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento de meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar, Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como era antes. - Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz? - É... – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão... O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário