Por Mário Eduardo Martelotta
Quando nos deparamos com a expressão "funções da linguagem", devemos inicialmente nos perguntar em que sentido o vocábulo "função" está sendo empregado. Trata-se de um termo de difícil definição, já que, além de ser utilizado com acepções distintas por autores diferentes, não é raro um mesmo autor lhe atribuir significados um pouco distintos.
Entretanto, deixando de lado questões teóricas mais complexas, podemos atingir uma boa compreensão de termo, apelando para o conceito de função que empregamos no nosso dia a dia. Se alguém nos perguntasse qual a função do apagador na sala de aula, não teríamos dificuldade em responder que, como o próprio nome sugere, tal objeto serve para apagar o quadro. Do mesmo modo, não teríamos problemas em enumerar funções de ferramentas como martelo ou a chave de fenda.
Mas, quando se trata de algo abstrato e complexo como a linguagem, a pergunta se torna mais difícil de responder: qual a função – ou as funções – da linguagem? Poderíamos propor que a função da linguagem é transmitir informações de um indivíduo a outro ou de uma geração a outra. Mas essa visão se mostra, no mínimo, ingênua quando presenciamos o seguinte diálogo entre duas pessoas que se encontram na rua: um deles pergunta “Como vai? Tudo bem?”, o outro responde com a mesma pergunta “Como vai? Tudo bem?” e ambos continuam seu caminho com a consciência de ter cumprido plenamente seu papel social. Não podemos dizer que, em casos como esse, tenha ocorrido, de fato, transmissão de informação.
Se a linguagem possui diferentes funções, associadas a comportamentos enraizados na vida social que transcendem a mera transmissão de informações, como delimitar essas funções? Vários cientistas tentaram responder a essa pergunta, como o psicólogo alemão Karl Bühler e linguistas como Roman Jakobson e, mais recentemente, M. A. K. Halliday. Passaremos a analisar a proposta de Jakobson.
AS FUNÇÕES DA LINGUAGEM SEGUNDO JAKOBSON
Segundo o autor, a linguagem apresenta uma variedade de funções, mas, para que possamos compreender cada uma delas, devemos levar em conta os elementos constitutivos de todo ato de comunicação, que estão abaixo arranjados:
Esquema de Jakobson
Devemos entender desse quadro que, para que haja comunicação, não basta que um remetente envie uma mensagem a um destinatário, pois, para que essa mensagem seja compreendida, é necessário que ela preencha algumas condições. Isso significa que uma mensagem eficaz requer:
a) Um contexto apreensível pelo destinatário
a) Um contexto apreensível pelo destinatário
Estamos aqui diante de outro termo de difícil definição. A noção de “contexto” remete ao próprio conteúdo referencial da mensagem, ou seja, às informações que fazem referência à realidade biossocial que circunda nossa vida e que estão em evidência na mensagem transmitida. Nesse sentido, podemos dizer que as informações, na prática, nunca se limitam ao conteúdo da mensagem em si. Ou seja, a interpretação adequada de uma frase pode, por exemplo, depender de informações transmitidas em frases proferidas anteriormente (contexto linguístico) ou de dados referente ao local, ao momento da comunicação ou mesmo ao tipo de relação entre os interlocutores (situação extralinguística).
Quando ouvimos, por exemplo, alguém proferir uma frase como “Passei muitos exercícios na aula de hoje”, acionamos um conjunto de conhecimentos referentes à estrutura de uma sela de aula, que são necessários para que possamos compreender plenamente o conteúdo dessa frase. Sabemos de antemão que aulas são eventos diários, o que nos permite compreender, sem problemas, a expressão “aula de hoje”. Temos conhecimento, através de nossa vivência escolar, de que exercícios de fixação fazem parte do procedimento, assim como eles são normalmente ministrados. Essas informações, embora não sejam expressas na frase, são evocadas pelo destinatário no processo de decodificação e sem elas não seria possível uma interpretação adequada.
Ampliando um pouco mais a noção de contexto, podemos dizer que o termo abrange todas as informações referentes às condições de produção da mensagem: o emissor, o destinatário, o tipo de relação existente entre eles, o local e a situação em que a mensagem é proferida, entre outras coisas. Nesse sentido, se a frase acima fosse enunciada por um professor de português, por exemplo, assumiria um sentido diferente daquela que apresentaria se tivesse sido dita por um professor de ginástica, já que, no segundo caso os exercícios seriam de natureza física.
Resumindo, para que o destinatário possa compreender a mensagem, precisa conhecer um conjunto de informações que vai desde elementos relacionados ao momento da produção dessa mensagem ate dados referentes ao conhecimento do assunto em pauta. A esse conjunto de conhecimentos podemos chamar de contexto.
b) Um código que seja conhecido por remetente e destinatário
O termo “código” constitui um conjunto de sinais ou signos convencionados para promover a comunicação entre as pessoas. São códigos as línguas faladas no mundo como o português ou o italiano, assim como os suas correspondentes escritas. São também códigos da língua de sinais utilizada pelos surdos, os painéis de sinalização de trânsito, o código Morse, entre outros.
Não é difícil compreender que, para que se dê a comunicação, remetente e destinatário têm de utilizar e conhecer razoavelmente o mesmo código. Um japonês que não fale português e um brasileiro que não conheça japonês certamente terão muitas dificuldades de se comunicar; a solução para seu problema seria buscar outro código para se comunicarem entre si: gestos, outra língua mais conhecida como o inglês, etc.
c) Um contato ou contato ou canal físico e uma conexão psicológica entre remetente e destinatário que permita a troca de informações
“O termo canal” refere-se ao meio pelo qual é transmitida a mensagem. No caso da comunicação verbal em presença, considera-se que o ar, através do qual as ondas sonoras se propagam, é o canal transmissor. No caso de comunicação a distância, o telefone é um canal de comunicação, assim como as faixas de frequência de radio, por exemplo. Podemos compreender, entre, que um remetente localizado no Ceará terá dificuldades de se comunicar com alguém que esteja no Rio Grande do sul, a menos que consiga utilizar algum canal de comunicação. Nesse caso, telefone ou e-mail são algumas das alternativas possíveis.
Por outro lado, como uma frase nunca traz todas as informações necessárias para a compreensão adequada da mensagem, como dissemos ao analisar a noção de contexto, a comunicação é essencialmente uma atividade cooperativa. É fundamental, portanto, algum tipo de interesse comum que crie uma conexão psicológica entre os participantes, sem a qual a comunicação seria prejudicada.
Com base nesses elementos constitutivos do ato da comunicação, Jakobson estipulou seis funções da linguagem, cada uma centrada em um desses elementos. Vejamos:
1) Função referencial – consiste na transmissão de informações do remetente ao destinatário. Essa função está centrada no contexto já que reflete uma preocupação em transmitir conhecimentos referentes a pessoas, objetos ou acontecimentos. Podemos pensar como exemplos dessa função as notícias apresentadas em um veículo de informações como o jornal.
2) Função emotiva – consiste na exteriorização da emoção do remetente em relação àquilo que fala de modo que essa emoção transpareça no nível da mensagem. Essa função está centrada no próprio remetente, já que é sua emoção que está em jogo na mensagem. Um exemplo de função emotiva está em uma situação em que o indivíduo, ao tentar martelar um prego, acerta o próprio dedo e profere um palavrão. Em mensagens marcadas por esta função, podemos detectar a emoção do remetente na entonação que usa (é edifícil imaginar um locutor narrando uma partida de futebol com uma entonação sonolenta já que sua tarefa é passar emoção do jogo) ou em sua escolha vocabular (entre as frases “Ele saiu de casa” e “O canalha abandonou o lar”, a segunda é certamente mais emotiva já que reflete um envolvimento do falante com a situação).
3) Função conativa – consiste em influenciar o comportamento do destinatário. Essa função está centrada no destinatário, já que ele é o alvo da informação. Um bom exemplo da função conativa é a propaganda, cuja função básica é persuadir o público a comprar um produto, votar em um político ou agir de determinada maneira.
4) Função fática – consiste em iniciar, prolongar ou terminar um ato de comunicação. Está, portanto, centrada no canal, já que não visa propriamente à comunicação, mas ao estabelecimento ou ao fim do contato, refletindo também a preocupação de testar o contato, checar o recebimento da mensagem e, em muitos casos, tentar manter o contato. Um exemplo disso podemos ver na utilização do alô, no telefone, para indicar que estamos na escuta, prontos para que o interlocutor tem a dizer.
5) Função metalinguística – consiste em usar a linguagem para se referir à própria linguagem. Centrada no código, essa função se justifica pelo fato de os humanos utilizarem a linguagem para se referir não apenas à realidade biossocial, mas também aos aspectos relacionados ao código ou à linguagem utilizados para esse fim. Os verbetes de dicionário são um bom exemplo desse tipo de função, já que dão pistas do significado das palavras.
6) Função poética – consiste na projeção do eixo da seleção sobre o eixo da combinação dos elementos linguísticos. Centrada na mensagem, essa função caracteriza-se pelo enfoque na mensagem e em sua forma.
Para que possamos compreender essa definição, temos de nos lembrar daquilo que Jakobson caracterizou como os dois tipos básicos de arranjos utilizados no processo verbal: seleção e combinação. Nesse sentido, podemos dizer que, ao formar uma frase, inicialmente o falante seleciona as palavras que melhor expressam suas ideias naquela situação de comunicação. Além disso, o falante combina, de acordo com as regras sintáticas de sua língua, as palavras selecionadas, de modo que elas constituam um enunciado que faça sentido para o interlocutor.
MARTELOTTA, Mário Eduardo. (Org.) Manual de Linguística. 1. ed. 2ª reimpressão - São Paulo: Contexto, 2009.
Para que possamos compreender essa definição, temos de nos lembrar daquilo que Jakobson caracterizou como os dois tipos básicos de arranjos utilizados no processo verbal: seleção e combinação. Nesse sentido, podemos dizer que, ao formar uma frase, inicialmente o falante seleciona as palavras que melhor expressam suas ideias naquela situação de comunicação. Além disso, o falante combina, de acordo com as regras sintáticas de sua língua, as palavras selecionadas, de modo que elas constituam um enunciado que faça sentido para o interlocutor.
Mas voltemos à definição proposta por Jakobson para função poética. Como compreender a noção de projeção do eixo da combinação sobre o eixo de seleção? Para isso precisamos entender que a combinação das palavras se manifesta na superfície da frase, sendo, portanto, perceptível para o ouvinte. Por outro lado, a seleção constitui um processo de cunho psicológico, que normalmente não é visível na estrutura da frase. Como o ouvinte poderia perceber que o falante escolheu os termos da frase que acabou de transmitir? Seguindo Jakobson, isso ocorre em mensagens caracterizadas por rimas, jogos de palavras, aliterações e outros processos da natureza estilística, que sugerem uma escolha mais cuidadosa das palavras. Vejamos os versos de Chico Buarque apresentados abaixo:
A gente faz hora, faz fila na vila do meio-dia
Para ver Maria
A gente almoça e só se coça, e se roça, e só se vicia.
Podemos notar, nos versos acima, repetições de sons e rima. A presença desses recursos demonstra que essas palavras foram escolhidas de modo meticuloso para, nesse caso especificarmos, criar o efeito estético que caracteriza o discurso poético. Ou seja, em função desses recursos, o eixo da combinação se projeta sobre o da seleção, ficando também evidente na superfície da frase. Esse é um bom exemplo de função poética.
É importante registrar aqui que a função poética não está presente apenas em textos literários. Segundo Jakobson, a função poética não é exclusiva da arte verbal, mas predominante nela. Isso significa que podemos encontrá-la também em ditados e expressões populares (ex.: “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” e “por fora bela viola, por dentro pão bolorento”) ou em slogans de propaganda (ex.: “Quem é vivo faz seguro de vida no fundo Itaú”, em que a palavra “vivo” recebe, ao mesmo tempo, duas interpretações: “que está vivo” e “esperto”).
Aliás, Jakobson chama atenção para o fato de que, embora, para efeito de análise, possamos distinguir essas seis funções, na prática, elas não são exclusivas. Ou seja, uma mesma mensagem apresenta mais de uma dessas funções, de modo que a decisão referente a qual a função que caracteriza uma mensagem é mais uma questão de decidir a ordem hierárquica de funções do que de escolher apenas uma.
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