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quinta-feira, 21 de julho de 2011

Farsa ou Auto de Inês Pereira
Gil Vicente


A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.

A figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando.


Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela  canta esta cantiga:

Canta Inês:

    Quien con veros pena y muere
    Que hará quando no os viere?

(Falando)

INÊS    Renego deste lavrar
    E do primeiro que o usou;
    Ó diabo que o eu dou,
    Que tão mau é d'aturar.
    Oh Jesu! que enfadamento,
    E que raiva, e que tormento,
    Que cegueira, e que canseira!
    Eu hei-de buscar maneira
    D'algum outro aviamento.

    Coitada, assi hei-de estar
    Encerrada nesta casa
    Como panela sem asa,
    Que sempre está num lugar?
    E assi hão-de ser logrados
    Dous dias amargurados,
    Que eu possa durar viva?
    E assim hei-de estar cativa
    Em poder de desfiados?

    Antes o darei ao Diabo
    Que lavrar mais nem pontada.
    Já tenho a vida cansada
    De fazer sempre dum cabo.
    Todas folgam, e eu não,
    Todas vêm e todas vão
    Onde querem, senão eu.
    Hui! e que pecado é o meu,
    Ou que dor de coração?

    Esta vida he mais que morta.
    Sam eu coruja ou corujo,
    Ou sam algum caramujo
    Que não sai senão à porta?
    E quando me dão algum dia
    Licença, como a bugia,
    Que possa estar à janela,
    É já mais que a Madanela
    Quando achou a aleluía.

Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:

MÃE    Logo eu adivinhei
    Lá na missa onde eu estava,
    Como a minha Inês lavrava
    A tarefa que lhe eu dei...
    Acaba esse travesseiro!
    Hui! Nasceu-te algum unheiro?
    Ou cuidas que é dia santo?
INÊS    Praza a Deos que algum quebranto?
    Me tire do cativeiro.

MÃE    Toda tu estás aquela!
    Choram-te os filhos por pão?
INÊS    Prouvesse a Deus! Que já é razão
    De eu não estar tão singela.
MÃE    Olhade ali o mau pesar...
    Como queres tu casar
    Com fama de preguiçosa?
INÊS    Mas eu, mãe, sam aguçosa
    E vós dais-vos de vagar.

MÃE    Ora espera assi, vejamos.
INÊS    Quem já visse esse prazer!
MÃE    Cal'-te, que poderá ser
    Que «ame a Páscoa vêm os Ramos».
    Não te apresses tu, Inês.
    «Maior é o ano que o mês»:
    Quando te não precatares,
    Virão maridos a pares,
    E filhos de três em três.

INÊS    Quero-m'ora alevantar.
    Folgo mais de falar nisso,
    Assi me dê Deos o paraíso,
    Mil vezes que não lavrar
    Isto não sei que me faz
MÃE    Aqui vem Lianor Vaz.
INÊS    E ela vem-se benzendo...

(Entra Lianor Vaz)

LIANOR    Jesu a que me eu encomendo!
    Quanta cousa que se faz!

MÃE    Lianor Vaz, que é isso?
LIANOR    Venho eu, mana, amarela?
MÃE    Mais ruiva que uma panela.
LIANOR    Não sei como tenho siso!
    Jesu! Jesu! que farei?
    Não sei se me vá a el-Rei,
    Se me vá ao Cardeal.
MÃE    Como? e tamanho é o mal?
LIANOR    Tamanho? eu to direi:

    Vinha agora pereli
    Ó redor da minha vinha,
    E hum clérigo, mana minha,
    Pardeos, lançou mão de mi;
    Não me podia valer
    Diz que havia de saber
    S'era eu fêmea, se macho.
MÃE    Hui! seria algum muchacho,
    Que brincava por prazer?

LIANOR    Si, muchacho sobejava
    Era hum zote tamanhouço!
    Eu andava no retouço,
    Tão rouca que não falava.
    Quando o vi pegar comigo,
    Que m'achei naquele p'rigo:
    – Assolverei! - não assolverás!
    –Tomarei! - não tomarás!
    – Jesu! homem, qu'has contigo?

    – Irmã, eu te assolverei
    Co breviairo de Braga.

    – Que breviairo, ou que praga!
    Que não quero: aqui d'el-Rei! –
    Quando viu revolta a voda,
    Foi e esfarrapou-me toda
    O cabeção da camisa.
MÃE   Assi me fez dessa guisa
    Outro, no tempo da poda.

    Eu cuidei que era jogo,
    E ele... dai-o vós ao fogo!
    Tomou-me tamanho riso,
    Riso em todo meu siso,
    E ele leixou-me logo.
LIANOR   Si, agora, eramá,
    Também eu me ria cá
    Das cousas que me dizia:
    Chamava-me «luz do dia».
    – «Nunca teu olho verá!» –

    Se estivera de maneira
    Sem ser rouca, bradar'eu;
    Mas logo m'o demo deu
    Catarrão e peitogueira,
    Cócegas e cor de rir,
    E coxa pera fugir,
    E fraca pera vencer:
    Porém pude-me valer
    Sem me ninguém acudir...

    O demo (e não pode al ser)
    Se chantou no corpo dele.
MÃE   Mana, conhecia-te ele?
LIANOR    Mas queria-me conhecer!
MÃE    Vistes vós tamanho mal?
LIANOR    Eu m'irei ao Cardeal,
    E far-lhe-ei assi mesura,
    E contar lhe-ei a aventura
    Que achei no meu olival.

MÃE   Não estás tu arranhada,
    De te carpir, nas queixadas?
LIANOR    Eu tenho as unhas cortadas,
    E mais estou tosquiada:
    E mais pera que era isso?
    E mais pera que é o siso?
    E mais no meio da requesta
    Veio hum homem de hüa besta,
    Que em vê-lo vi o p'raíso,

    E soltou-me, porque vinha
    Bem contra sua vontade.
    Porém, a falar a verdade,
    Já eu andava cansadinha:
    Não me valia rogar
    Nem me valia chamar:
    – «Aque de Vasco de Fois,
    Acudi-me, como sois!»
    E ele... senão pegar:

    – Mais mansa, Lianor Vaz,
    Assi Deus te faça santa.
    – Trama te dê na garganta!
    Como! isto assi se faz?
    – Isto não revela nada...
    – Tu não vês que são casada?
MÃE    Deras-lhe, má hora, boa,
    E mordera-lo na coroa.
LIANOR    Assi! fora excomungada.

    Não lhe dera um empuxão,
    Porque sou tão maviosa,
    Que é cousa maravilhosa.
    E esta é a concrusão.
    Leixemos isto. Eu venho
    Com grande amor que vos tenho,
    Porque diz o exemplo antigo
    Que a amiga e bom amigo
    Mais aquenta que o bom lenho.

    Inês está concertada
    Pera casar com alguém?
MÃE    Até `gora com ninguém
    Não é ela embaraçada.
LIANOR    Eu vos trago um casamento
    Em nome do anjo bento.
    Filha, não sei se vos praz.
INÊS    E quando, Lianor Vaz?
LIANOR    Eu vos trago aviamento.

INÊS    Porém, não hei-de casar
    Senão com homem avisado
    Ainda que pobre e pelado,
    Seja discreto em falar
LIANOR    Eu vos trago um bom marido,
    Rico, honrado, conhecido.
    Diz que em camisa vos quer
INÊS    Primeiro eu hei-de saber
    Se é parvo, se sabido.

LIANOR    Nesta carta que aqui vem
    Pera vós, filha, d'amores,
    Veredes vós, minhas flores,
    A discrição que ele tem.
INÊS    Mostrai-ma cá, quero ver
LIANOR    Tomai. E sabedes vós ler?
MÃE    Hui! e ela sabe latim
    E gramática e alfaqui
    E tudo quanto ela quer!

INÊS (lê a carta)

    «Senhora amiga Inês Pereira,
    Pêro Marquez, vosso amigo,
    Que ora estou na nossa aldea,
    Mesmo na vossa mercea
    M'encomendo. E mais digo,
    Digo que benza-vos Deos,
    Que vos fez de tão bom jeito.
    Bom prazer e bom proveito
    Veja vossa mãe de vós.

    Ainda que eu vos vi
    Est'outro dia folgar
    E não quisestes bailar,
    Nem cantar presente mi...»
INÊS    Na voda de seu avô,
    Ou onde me viu ora ele?
    Lianor Vaz, este é ele?
LIANOR    Lede a carta sem dó,
    Que inda eu são contente dele.

Prossegue Inês Pereira a carta:

    «Nem cantar presente mi.
    Pois Deos sabe a rebentinha
    Que me fizestes então.
    Ora, Inês, que hajais bênção
    De vosso pai e a minha,
    Que venha isto a concrusão.
    E rogo-vos como amiga,
    Que samicas vós sereis,
    Que de parte me faleis
    Antes que outrem vo-lo diga.
    E, se não fiais de mi,
    Esteja vossa mãe aí,
    E Lianor Vaz de presente.

    Veremos se sois contente
    Que casemos na boa hora.»
INÊS    Des que nasci até agora
    Não vi tal vilão com'este,
    Nem tanto fora de mão!
LIANOR    Não queirais ser tão senhora.
    Casa, filha, que te preste,
    Não percas a ocasião.

    Queres casar a prazer
    No tempo d'agora, Inês?
    Antes casa, em que te pês,
    Que não é tempo d'escolher.
    Sempre eu ouvi dizer:
    «Ou seja sapo ou sapinho,
    Ou marido ou maridinho,
    Tenha o que houver mister.»
    Este é o certo caminho.

MÃE    Pardeus, amiga, essa é ela!
    «Mata o cavalo de sela
    E bom é o asno que me leva».
    Filha, «no Chão de Couce
    Quem não puder andar choute.»
    E: «mais quero eu quem m'adore
    Que quem faça com que chore».
    Chamá-lo-ei, Inês?
INÊS    Si.

    Venha e veja-me a mi.
    Quero ver quando me vir
    Se perderá o presumir
    Logo em chegando aqui,
    Pera me fartar de rir.

MÃE    Touca-te, se cá vier
    Pois que pera casar anda.
INÊS    Essa é boa demanda!
    Cerimónias há mister
    Homem que tal carta manda?
    Eu o estou cá pintando:
    Sabeis, mãe, que eu adivinho?
    Deve ser um vilãozinho
    Ei-lo, se vem penteando:
    Será com algum ancinho?

Aqui vem Pêro Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante, e vem dizendo:

PÊRO    Homem que vai aonde eu vou
    Não se deve de correr
    Ria embora quem quiser
    Que eu em meu siso estou.
    Não sei onde mora aqui...
    Olhai que m'esquece a mi!
    Eu creo que nesta rua...
    E esta parreira é sua.
    Já conheço que é aqui.

    Chega Pêro Marques aonde elas
    estão, e diz:
    Digo que esteis muito embora.
    Folguei ora de vir cá...
    Eu vos escrevi de lá
    Üa cartinha, senhora...
    E assi que de maneira...
MÃE    Tomai aquela cadeira.
PÊRO    E que val aqui uma destas?
INÊS    (Ó Jesu! que João das bestas!
    Olhai aquela canseira!)

Assentou-se com as costas pera elas, e diz:

PÊRO    Eu cuido que não estou bem...
MÃE    Como vos chamais, amigo?
PÊRO    Eu Pêro Marques me digo,
    Como meu pai que Deos tem.
    Faleceu, perdoe-lhe Deos,
    Que fora bem escusado,
    E ficamos dous eréos.
    Porém meu é o mor gado.
MÃE    De morgado é vosso estado?
    Isso viria dos céus.

PÊRO    Mais gado tenho eu já quanto,
    E o mor de todo o gado,
    Digo maior algum tanto.
    E desejo ser casado,
    Prouguesse ao Espírito Santo,
    Com Inês, que eu me espanto
    Quem me fez seu namorado.
    Parece moça de bem,
    E eu de bem, er também.
    Ora vós er ide vendo
    Se lhe vem milhor ninguém,
    A segundo o que eu entendo.

    Cuido que lhe trago aqui
    Pêras da minha pereira...
    Hão-de estar na derradeira.
    Tende ora, Inês, per i.
INÊS    E isso hei-de ter na mão?
PÊRO    Deitae as peas no chão.
INÊS    As perlas pera enfiar..
    Três chocalhos e um novelo...
    E as peias no capelo...
    E as pêras? Onde estão?

PÊRO    Nunca tal me aconteceu!
    Algum rapaz m'as comeu...
    Que as meti no capelo,
    E ficou aqui o novelo,
    E o pente não se perdeu.
    Pois trazia-as de boa mente...
INÊS    Fresco vinha aí o presente
    Com folhinhas borrifadas!
PÊRO    Não, que elas vinham chentadas
    Cá em fundo no mais quente.

    Vossa mãe foi-se? Ora bem...
    Sós nos leixou ela assi?...
    Cant'eu quero-me ir daqui,
    Não diga algum demo alguém...
INÊS    Vós que me havíeis de fazer?
    Nem ninguém que há-de dizer?
    (O galante despejado!).
PÊRO    Se eu fora já casado,
    D'outra arte havia de ser
    Como homem de bom recado.

INÊS    (Quão desviado este está!
    Todos andam por caçar
    Suas damas sem casar
    E este... tomade-o lá!).
PÊRO    Vossa mãe é lá no muro?
INÊS    Minha mãe eu vos seguro
    Que ela venha cá dormir
PÊRO    Pois, senhora, eu quero-me ir
    Antes que venha o escuro.
INÊS    E não cureis mais de vir.

PÊRO    Virá cá Lianor Vaz,
    Veremos que lhe dizeis...
INÊS    Homem, não aporfieis,
    Que não quero, nem me apraz.
    Ide casar a Cascais.
PÊRO    Não vos anojarei mais,
    Ainda que saiba estalar;
    E prometo não casar
    Até que vós não queirais.

    (Pêro vai-se, dizendo:)
    Estas vos são elas a vós:
    Anda homem a gastar calçado,
    E quando cuida que é aviado,
    Escarnefucham de vós!
    Creo que lá fica a pea...
    Pardeus! Bô ia eu à aldeia!

(Voltando atrás)

    Senhora, cá fica o fato?
INÊS    Olhai se o levou o gato...
PÊRO    Inda não tendes candea?
    Ponho per cajo que alguém
    Vem como eu vim agora,
    E vos acha só a tal hora:
    Parece-vos que será bem?
    Ficai-vos ora com Deos:
    Çarrai a porta sobre vós
    Com vossa candeazinha.
    E sicais sereis vós minha,
    Entonces veremos nós...

(Vai-se Pêro Marques e diz Inês Pereira:)

INÊS    Pessoa conheço eu
    Que levara outro caminho...
    Casai lá com um vilãozinho,
    Mais covarde que um judeu!
    Se fora outro homem agora,
    E me topara a tal hora,
    Estando assi às escuras,
    Dissera-me mil doçuras,
    Ainda que mais não fora...

(Vem a Mãe e diz:)

MÃE    Pêro Marques foi-se já?
INÊS    E pera que era ele aqui?
MÃE    E não t'agrada ele a ti?
INÊS    Vá-se muitieramá!
    Que sempre disse e direi:
    Mãe, eu me não casarei
    Senão com homem discreto,
    E assi vo-lo prometo
    Ou antes o leixarei.

    Que seja homem mal feito,
    Feio, pobre, sem feição,
    Como tiver discrição,
    Não lhe quero mais proveito.
    E saiba tanger viola,
    E coma eu pão e cebola.
    Siquer uma cantiguinha!
    Discreto, feito em farinha,
    Porque isto me degola.

MÃE    Sempre tu hás-de bailar
    E sempre ele há-de tanger?
    Se não tiveres que comer
    O tanger te há-de fartar?
INÊS    Cada louco com sua teima.
    Com uma borda de boleima
    E uma vez d'água fria,
    Não quero mais cada dia.
MÃE   Como às vezes isso queima!

    E que é desses escudeiros?
INÊS    Eu falei ontem ali
    Que passaram por aqui
    Os judeos casamenteiros
    E hão-de vir agora aqui.

Aqui entram os Judeus casamenteiros, um, Latão, e outro, Vidal e diz Latão:

LATÃO    Ou de cá!
INÊS    Quem está lá?
VIDAL    Nome del Deu, aqui somos!
LATÃO    Não sabeis quão longe fomos!
VIDAL    Corremos a iramá.
    Este e eu.

LATÃO    Eu, e este...
VIDAL    Pola lama e polo pó,
    Que era pera haver dó,
    Com chuva, sol e Nordeste.
    Foi a coisa de maneira,
    Tal friúra e tal canseira,
    Que trago as tripas maçadas.
    Assi me fadem boas fadas
    Que me saltou caganeira!

    Pera vossa mercê ver
    O que nos encomendou.
LATÃO  O que nos encomendou
    Será o que hoiver de ser
    Todo este mundo é fadiga
    Vós dixestes, fiiha amiga,
    Que vos buscássemos logo...
VIDAL    E logo pujemos fogo...
LATÃO    Cala-te!
VIDAL    Não queres que diga?

    Não fui eu também contigo?
    Tu e eu não somos eu?
    Tu judeu e eu judeu,
    Não somos massa dum trigo?
LATÃO    Leixa-me falar.

VIDAL    Já calo.
    Senhora, fomos... agora falo,
    Ou falas tu?
LATÃO   Dize, que dizias?
    Que foste, que fomos, que ias
    Buscá-lo, esgravatá-lo...
VIDAL    Vós, amor, quereis marido
    Mui discreto, e de viola?
LATÃO   Esta moça não é tola,
    Que quer casar per sentido...
VIDAL    Judeu, queres-me leixar?
LATÃO    Leixo, não quero falar
VIDAL    Buscámo-lo...
LATÃO    Demo foi logo!
    Crede que o vosso rogo
    Vencerá o Tejo e o mar

    Eu cuido que falo e calo...
    Calo eu agora ou não?
    Ou falo se vem à mão?
    Não digas que não te falo.
INÊS    Jesu! Guarde-me ora Deus!
    Não falará um de vós?
    Já queria saber isso...
MÃE    Que siso, Inês, que siso
    Tens debaixo desses véus...

INÊS    Diz o exemplo da velha:
    «O que não haveis de comer
    Leixai-o a outrem mexer».
MÃE    Eu não sei quem t'aconselha...
INÊS    Enfim, que novas trazeis?
VIDAL   O marido que quereis,
    De viola e dessa sorte,
    Não no há senão na corte
    Que cá não no achareis.

    Falámos a Badajoz,
    Músico, discreto, solteiro.
    Este fora o verdadeiro,
    Mas soltou-se-nos da noz.
    Fomos a Vilhacastim
    E falou-nos em latim:
    – «Vinde cá daqui a uma hora,
    E trazei-me essa senhora».
INÊS    Assi que é tudo nada enfim!

VIDAL    Esperai, aguardai ora!
    Soubemos dum escudeiro
    De feição d'atafoneiro
    Que virá logo essora,
    Que fala... e com' ora fala!
    Estrugirá esta sala.
    E tange... e com' ora tange!
    E alcança quanto abrange,
    E se preza bem da gala.

Vem o Escudeiro, com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando só:

ESCUDEIRO    Se esta senhora é tal
    Como os Judeus ma gabaram,
    Certo os anjos a pintaram,
    E não pode ser i al.
    Diz que os olhos com que via
    Foram de Santa Luzia,
    Cabelos, da Madanela...
    Se fosse moça tão bela,
    Como donzela seria?

    Moça de vila será ela
    Com sinalzinho postiço,
    E sarnosa no toutiço,
    Como burra de Castela.
    Eu, assi como chegar
    Cumpre-me bem atentar
    Se é garrida, se honesta,
    Porque o milhor da festa
    É achar siso e calar.

(Falando para Inês:)

MÃE    Se este escudeiro há-de vir
    E é homem de discrição,
    Hás-te de pôr em feição,
    De falar pouco e não rir
    E mais, Inês, não muito olhar
    E muito chão o menear
    Por que te julguem por muda,
    Porque a moça sesuda
    É uma perla pera amar.

(Falando para o criado:)

ESCUDEIRO    Olha cá, Fernando, eu vou
    Ver a com que hei-de casar.
    Avisa-te, que hás-de estar
    Sem barrete onde eu estou.
MOÇO    (Como a rei! Corpo de mi!
    Mui bem vai isso assi...)
ESCUDEIRO    E, se cuspir, pola ventura,
    Põe-lhe o pé e faz mesura.
MOÇO    (Ainda eu isso não vi!)
ESCUDEIRO    E se me vires mentir
    Gabando-me de privado,
    Está tu dissimulado,
    Ou sai-te pera fora a rir
    Isto te aviso daqui,
    Faze-o por amor de mi.
MOÇO   Porém, senhor digo eu
    Que mau calçado é o meu
    Pera estas vistas assi.
ESCUDEIRO    Que farei, que o sapateiro
    Não tem solas nem tem pele?
MOÇO   Sapatos me daria ele,
    Se me vós désseis dinheiro...
ESCUDEIRO    Eu o haverei agora.
    E mais calças te prometo.
MOÇO    (Homem que não tem nem preto,
    Casa muito na má hora.)

Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e levantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o Escudeiro:

ESCUDEIRO    Antes que mais diga agora,
    Deus vos salve, fresca rosa,
    E vos dê por minha esposa,
    Por mulher e por senhora;
    Que bem vejo
    Nesse ar, nesse despejo,
    Mui graciosa donzela,
    Que vós sois, minha alma, aquela
    Que eu busco e que desejo.
    Obrou bem a Natureza
    Em vos dar tal condição
    Que amais a discrição
    Muito mais que a riqueza.
    Bem parece
    Que a discrição merece
    Gozar vossa fermosura,
    Que é tal que, de ventura,
    Outra tal não se acontece.
    Senhora, eu me contento
    Receber vos como estais:
    Se vós vos não contentais,
    O vosso contentamento
    Pode falecer no mais.

LATÃO    (Como fala!
VIDAL    E ela como se cala!
    Tem atento o ouvido...
    Este há-de ser seu marido,
    Segundo a coisa s'abala.)
ESCUDEIRO    Eu não tenho mais de meu,
    Somente ser comprador
    Do Marichal meu senhor
    E são escudeiro seu.
    Sei bem ler
    E muito bem escrever
    E bom jogador de bola,
    E quanto a tanger viola,
    Logo me vereis tanger
    Moço, que estais lá olhando?
MOÇO    Que manda Vossa Mercê?
ESCUDEIRO    Que venhais cá.
MOÇO    Pera quê?
ESCUDEIRO    Por que faças o que eu mando!
MOÇO    Logo vou.
    (O Diabo me tomou:
    Sair me de João Montês
    Por servir um tavanês
    Mor doudo que Deus criou!)
ESCUDEIRO    Fui despedir um rapaz
    Que valia Perpinhão,
    Por tomar este ladrão.
    Moço!

MOÇO    Que vos praz?
ESCUDEIRO    A viola.
MOÇO    (Oh! como ficará tola
    Se não fosse casar ante
    Co mais sáfio bargante
    Que coma pão e cebola!).
    Ei-la aqui bem temperada,
    Não tendes que temperar
ESCUDEIRO  Faria bem de ta quebrar
    Na cabeça bem migada!
MOÇO   E se ela é emprestada,
    Quem na havia de pagar?
    Meu amo, eu quero m'ir.
ESCUDEIRO  E quando queres partir?
MOÇO    Ante que venha o Inverno,
    Porque vós não dais governo
    Pera vos ninguém servir

ESCUDEIRO  Não dormes tu que te farte?
MOÇO    No chão, e o telhado por manta...
    E çarra-se m'a garganta
    Com fome.
ESCUDEIRO    Isso tem arte...
MOÇO    Vós sempre zombais assi.
ESCUDEIRO    Oh que boas vozes tem
    Esta viola aqui!
    Leixa-me casar a mi,
    Depois eu te farei bem.

MÃE    Agora vos digo eu
    Que Inês está no Paraíso!
INÊS    Que tendes de ver co isso?
    Todo o mal há-de ser meu.
MÃE    Quanta doudice!
INÊS    Oh! como é seca a velhice!
    Leixai-me ouvir e folgar,
    Que não me hei-de contentar
    De casar com parvoíce.
    Pode ser maior riqueza
    Que um homem avisado?
MÃE    Muitas vezes, mal pecado,
    é milhor boa simpreza.
LATÃO    Ora oivi, e oivireis.
    Escudeiro, cantareis
    Alguma boa cantadela.
    Namorai esta donzela
    E esta cantiga direis:

Canta o Judeu

    «Canas do amor, canas,
    canas do amor
    Polo longo dum rio
    Canaval vi florido,
    Canas do amo.»

Canta o Escudeiro o romance «Mal me quieren en Castilla» e diz Vidal:

VIDAL    Latão, já o sono é comigo
    Como oivo cantar guaiado,
    Que não vai esfandegado...

LATÃO    Esse é o Demo que eu digo!
    Viste cantar Dona Sol:
    Pelo mar voy a vela,
    Vela vay pelo mar?

VIDAL    Filha Inês, assi vivais
    Que tomeis esse senhor
    Escudeiro cantador
    E caçador de pardais,
    Sabedor revolvedor
    Falador gracejador
    Afoitado pela mão,
    E sabe de gavião...
    Tomai-o por meu amor.

    Podeis topar um rabugento,
    Desmazelado, baboso,
    Descancarado, brigoso,
    Medroso, carapatento.
    Este escudeiro, aosadas,
    Onde se derem pancadas,
    Ele as há-de levar
    Boas, senão apanhar..
    Nele tendes boas fadas.
MÃE    Quero rir com toda a mágoa
    Destes teus casamenteiros!
    Nunca vi Judeus ferreiros
    Aturar tão bem a frágoa.
    Não te é milhor mal por mal,
    Inês, um bom oficial,
    Que te ganhe nessa praça,
    Que é um escravo de graça,
    E mais casas com teu igual?

LATÃO    Senhora, perdei cuidado:
    O que há-de ser há-de ser;
    E ninguém pode tolher
    O que está determinado.
VIDAL    Assi diz Rabi Zarão.
MÃE    Inês, guar'-te de rascão!
    Escudeiro queres tu?
INÊS   Jesu, nome de Jesu!
    Quão fora sois de feição!

    Já minha mãe adivinha...
    Folgastes vós na verdade
    Casar à vossa vontade?
    Eu quero casar à minha.
MÃE    Casa, filha, muit'embora.
ESCUDEIRO    Dai-me essa mão, senhora.
INÊS    Senhor de mui boa mente.
ESCUDEIRO    Per palavras de presente
    Vos recebo desd'agora.

    Nome de Deus, assi seja!
    Eu, Brás da Mata, Escudeiro,
    Recebo a vós, Inês Pereira
    Por mulher e por parceira
    Como manda a Santa Igreja.
INÊS    Eu, aqui diante Deus,
    Inês Pereira, recebo a vós,
    Brás da Mata, sem demanda,
    Como a Santa Igreja manda.

LATÃO   Juro al Deu! Aí somos nós!

Os Judeus ambos

    Alça manim, ó dona, ha!
    Arreia espeçulá.
    Bento o Deu de Jacob,
    Bento o Deu que a Faraó
MÃE    Espantou e espantará.
    Bento o Deu de Abraão,
    Benta a terra de Canão.
    Para bem sejais casados!
    Dai-nos cá senhos ducados.
MÃE    Amenhã vo-los darão.

    Pois assi é, bem será
    Que não passe isto assi.
    Eu quero chegar ali
    Chamar meus amigos cá,
    E cantarão de terreiro.
ESCUDEIRO    Oh! quem me fora solteiro!
INÊS    Já vós vos arrependeis?
ESCUDEIRO    Ó esposa, não faleis,
    Que casar é cativeiro.

Aqui vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem a festa, e diz uma delas, per nome Luzia:

Luz.   Inês, por teu bem te seja!
    Oh! que esposo e que alegria!
INÊS    Venhas embora, Luzia,
    E cedo t'eu assi veja.

 MÃE    Ora vae tu ali, Inês,
    E bailareis três por três.
FERNANDO    Tu connosco, Luzia, aqui,
    E a desposada ali,
    Ora vede qual direis.

Cantam todos a cantiga que se segue:

    «Mal herida va la garça
    Enamorada,
    Sola va y gritos dava.
    A las orillas de um rio
    La garça tenia el nido;
    Ballestero la ha herido
    En el alma;
    Sola va y gritos dava.»

E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:

 FERNANDO  Ora, senhores honrados,
    Ficai com vossa mercê,
    E nosso Senhor vos dê
    Com que vivais descansados.
    Isto foi assi agora,
    Mas melhor será outr'hora.
    Perdoai pelo presente:
    Foi pouco e de boa mente.
    Com vossa mercê, Senhora...

Luz.    Ficai com Deus, desposados,
    Com prazer e com saúde,
    E sempre Ele vos ajude
    Com que sejais bem logrados.
MÃE    Ficai com Deus, filha minha,
    Não virei cá tão asinha.
    A minha bênção hajais.
    Esta casa em que ficais
    Vos dou, e vou-me à casinha.

    Senhor filho e senhor meu,
    Pois que já Inês é vossa,
    Vossa mulher e esposa,
    Encomendo-vo-la eu.
    E, pois que des que naceu
    A outrem não conheceu,
    Senão a vós, por senhor
    Que lhe tenhais muito amor
    Que amado sejais no céu.

Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:

INÊS    Si no os huviera mirado
    No penara,
    Pero tampoco os mirara.
   
O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui agastado lhe diz:

ESCUDEIRO    Vós cantais, Inês Pereira?
    Em vodas m'andáveis vós?
    Juro ao corpo de Deus
    Que esta seja a derradeira!
    Se vos eu vejo cantar
    Eu vos farei assoviar..
INÊS    Bofé, senhor meu marido,
    Se vós disso sois servido,
    Bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO    Mas é bem que o escuseis,
    E outras cousas que não digo!
INÊS    Porque bradais vós comigo?
ESCUDEIRO    Será bem que vos caleis.
    E mais, sereis avisada
    Que não me respondais nada,
    Em que ponha fogo a tudo,
    Porque o homem sesudo
    Traz a mulher sopeada.

    Vós não haveis de falar
    Com homem nem mulher que seja;
    Nem somente ir à igreja
    Não vos quero eu leixar
    Já vos preguei as janelas,
    Por que não vos ponhais nelas.
    Estareis aqui encerrada
    Nesta casa, tão fechada
    Como freira d'Oudivelas.

INÊS    Que pecado foi o meu?
    Porque me dais tal prisão?
ESCUDEIRO    Vós buscastes discrição,
    Que culpa vos tenho eu?
    Pode ser maior aviso,
    Maior discrição e siso
    Que guardar o meu tisouro?
    Não sois vós, mulher meu ouro?
    Que mal faço em guardar isso?

    Vós não haveis de mandar
    Em casa somente um pêlo.
    Se eu disser: – isto é novelo –
    Havei-lo de confirmar
    E mais quando eu vier
    De fora, haveis de tremer;
    E cousa que vós digais
    Não vos há-de valer mais
    Que aquilo que eu quiser.

(para o criado)

    Moço, às Partes d'Além
    Me vou fazer cavaleiro.
MOÇO    (Se vós tivésseis dinheiro
    Não seria senão bem...)
ESCUDEIRO    Tu hás-de ficar aqui.
    Olha, por amor de mi,
    O que faz tua senhora:
    Fechá-la-ás sempre de fora.

(para Inês)

    Vós lavrai, ficai per i.

MOÇO    Co dinheiro que leixais
    Não comerei eu galinhas...
ESCUDEIRO    Vae-te tu por essas vinhas,
    Que diabo queres mais?
MOÇO    Olhai, olhai, como rima!
    E depois de ida a vindima?
ESCUDEIRO    Apanha desse rabisco.
MOÇO    Pesar ora de São Pisco!
    Convidarei minha prima...

    E o rabisco acabado,
    Ir me-ei espojar às eiras?
ESCUDEIRO    Vai-te per essas figueiras,
    E farta-te, desmazelado!
MOÇO    Assi?
ESCUDEIRO    Pois que cuidavas?
    E depois virão as favas.
    Conheces túbaras da terra?
MOÇO    I-vos vós, embora, à guerra,
    Que eu vos guardarei oitavas...

Ido o Escudeiro, diz o Moço:

MOÇO    Senhora, o que ele mandou
    Não posso menos fazer.
INÊS    Pois que te dá de comer
    Faze o que t'encomendou.
MOÇO    Vós fartai-vos de lavrar
    Eu me vou desenfadar
    Com essas moças lá fora:
    Vós perdoai-me, senhora,
    Porque vos hei-de fechar.

Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga:

INÊS    «Quem bem tem e mal escolhe
    Por mal que lhe venha não s'anoje.»
    Renego da discrição
    Comendo ò demo o aviso,
    Que sempre cuidei que nisso
    Estava a boa condição.
    Cuidei que fossem cavaleiros
    Fidalgos e escudeiros,
    Não cheios de desvarios,
    E em suas casas macios,
    E na guerra lastimeiros.

    Vede que cavalarias,
    Vede que já mouros mata
    Quem sua mulher maltrata
    Sem lhe dar de paz um dia!
    Sempre eu ouvi dizer
    Que o homem que isto fizer
    Nunca mata drago em vale
    Nem mouro que chamem Ale:
    E assi deve de ser.

    Juro em todo meu sentido
    Que se solteira me vejo,
    Assi como eu desejo,
    Que eu saiba escolher marido,
    À boa fé, sem mau engano,
    Pacífico todo o ano,
    E que ande a meu mandar
    Havia m'eu de vingar
    Deste mal e deste dano!

Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz:

MOÇO    Esta carta vem d’Além
    Creio que é de meu senhor.

INÊS    Mostrai cá, meu guarda-mor
    E veremos o que i vem.
    Lê o sobrescrito.
    «À mui prezada senhora
    Inês Pereira da Grã,
    À senhora minha irmã.»
    De meu irmão...Venha embora!

MOÇO    Vosso irmão está em Arzila?
    Eu apostarei que i vem
    Nova de meu senhor também.
INÊS    Já ele partiu de Tavila?
MOÇO    Há três meses que é passado.
INÊS    Aqui virá logo recado
    Se lhe vai bem, ou que faz.
MOÇO    Bem pequena é a carta assaz!
INÊS    Carta de homem avisado.

Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:

    «Muito honrada irmã,
    Esforçai o coração
    E tomai por devação
    De querer o que Deus quiser.»
    E isto que quer dizer?
    «E não vos maravilheis
    De cousa que o mundo faça,
    Que sempre nos embaraça
    Com cousas. Sabei que indo
    Vosso marido fugindo
    Da batalha pera a vila,
    A meia légua de Arzila,
    O matou um mouro pastor.»
MOÇO    Ó meu amo e meu senhor!

INÊS    Dai-me vós cá essa chave
    E i buscar vossa vida.
MOÇO   Oh que triste despedida!
INÊS    Mas que nova tão suave!
    Desatado é o nó.
    Se eu por ele ponho dó,
    O Diabo me arrebente!
    Pera mim era valente,
    E matou-o um mouro só!

    Guardar de cavaleirão,
    Barbudo, repetenado,
    Que em figura de avisado
    É malino e sotrancão.
    Agora quero tomar
    Pera boa vida gozar,
    Um muito manso marido.
    Não no quero já sabido,
    Pois tão caro há de custar.

Aqui vem Lianor Vaz, e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz:

LIANOR   Como estais, Inês Pereira?
INÊS   Muito triste, Lianor Vaz.
LIANOR   Que fareis ao que Deus faz?
INÊS   Casei por minha canseira.
LIANOR   Se ficaste prenhe basta.
INÊS   Bem quisera eu dele casta,
    Mas não quis minha ventura.
LIANOR   Filha, não tomeis tristura,
    Que a morte a todos gasta.

    O que havedes de fazer?
    Casade-vos, filha minha.
Inês   Jesu! Jesu! Tão asinha!
    Isso me haveis de dizer?
    Quem perdeu um tal marido,
    Tão discreto e tão sabido,
    E tão amigo de minha vida?
LIANOR   Dai isso por esquecido,
    E buscai outra guarida.

    Pêro Marques tem, que herdou,
    Fazenda de mil cruzados.
    Mas vós quereis avisados...
INÊS   Não! já esse tempo passou.
    Sobre quantos mestres são
    Experiência dá lição.
LIANOR   Pois tendes esse saber
    Querei ora a quem vos quer
    Dai ò demo a opinião.

Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo:

INÊS   Andar! Pêro Marques seja.
    Quero tomar por esposo
    Quem se tenha por ditoso
    De cada vez que me veja.
    Por usar de siso mero,
    Asno que me leve quero,
    E não cavalo folão.
    Antes lebre que leão,
    Antes lavrador que Nero.
   
Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor Vaz:

LIANOR   Nô mais cerimónias agora;
    Abraçai Inês Pereira
    Por mulher e por parceira.

PÊRO   Há homem empacho, má-hora,
    Cant'a dizer abraçar..
    Depois que a eu usar
    Entonces poderá ser:
INÊS   (Não lhe quero mais saber
    Já me quero contentar..).
LIANOR   Ora dai-me essa mão cá.
    Sabeis as palavras, si?
PÊRO   Ensinaram-mas a mi,
    Porém esquecem-me já...
LIANOR   Ora dizei como digo.
PÊRO   E tendes vós aqui trigo
    Pera nos jeitar por riba?
LIANOR   Inda é cedo... Como rima!
PÊRO   Soma, vós casais comigo,

    E eu com vosco, pardelhas!
    Não cumpre aqui mais falar
    E quando vos eu negar
    Que me cortem as orelhas.
LIANOR   Vou-me, ficai-vos embora.
INÊS   Marido, sairei eu agora,
    Que há muito que não saí?
PÊRO   Si, mulher saí-vos i,
    Qu'eu me irei pera fora.

INÊS   Marido, não digo isso.
PÊRO   Pois que dizeis vós, mulher?
INÊS   Ir folgar onde eu quiser
PÊRO   I onde quiserdes ir,
    Vinde quando quiserdes vir
    Estai onde quiserdes estar.
    Com que podeis vós folgar
    Qu'eu não deva consentir?

Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz:

    Señores, por caridad
    Dad limosna al dolorido
    Ermitaño de Cupido
    Para siempre en soledad.
    Pues su siervo soy nacido.
    Por ejemplo,
    Me meti en su santo templo
    Ermitaño en pobre ermita,
    Fabricada de infinita
    Tristeza en que contemplo,

    Adonde rezo mis horas
    Y mis dias y mis años,
    Mis servicios y mis daños,
    Donde tu, mi alma, Iloras
    El fin de tantos engaños.
    Y acabando
    Las horas, todas llorando,
    Tomo las cuentas una y una,
    Con que tomo a la fortuna
    Cuenta del mal en que ando,
    Sin esperar paga alguna.

    Y ansi sin esperanza
    De cobrar lo merecido,
    Sirvo alli mis dias Cupido
    Con tanto amor sin mudanza,
    Que soy su santo escogido.
    Ó señores,
    Los que bien os va d'amores,
    Dad limosna al sin holgura,
    Que habita en sierra oscura,
    Uno de los amadores
    Que tuvo menos ventura.

    Y rogaré al Dios de mi,
    En quien mis sentìdos traigo,
    Que recibais mejor pago
    De lo que yo recebi
    En esta vida que hago.
    Y rezaré
    Com gran devocion y fé,
    Que Dios os  libre d’engaño,
    Que esso me hizo ermitaño,
    Y pera siempre seré,
    Pues pera siempre es mi daño.

INÊS   Olhai cá, marido amigo,
    Eu tenho por devação
    Dar esmola a um ermitão.
    E não vades vós comigo
PÊRO   I-vos embora, mulher
    Não tenho lá que fazer

 (Inês fala a sós com o Ermitão):

INÊS   Tomai a esmola, padre, lá,
    Pois que Deus vos trouxe aqui.
ERMITÃO   Sea por amor de mi
    Vuesa buena caridad.
    Deo gratias, mi señora!
    La limosna mata el pecado,
    Pero vos teneis cuidado
    De matar-me cada hora.
    Deveis saber
    Para merced me hacer
    Que por vos soy ermitaño.
    Y aun más os desengaño:
    Que esperanças de os ver
    Me hizieron vestir tal paño.

INÊS   Jesu, Jesu! manas minhas!
    Sois vós aquele que um dia
    Em casa de minha tia
    Me mandastes camarinhas,
    E quando aprendia a lavrar
    Mandáveis-me tanta cousinha?
    Eu era ainda Inesinha,
    Não vos queria falar.

ERMITÃO   Señora, tengo-os servido
    Y vos a mi despreciado;
    Haced que el tiempo pasado
    No se cuente por perdido.
INÊS   Padre, mui bem vos entendo
    Ó demo vos encomendo,
    Que bem sabeis vós pedir!
    Eu determino lá d'ir
    À ermida, Deus querendo.

ERMITÃO   E quando?
INÊS    I-vos, meu santo,
    Que eu irei um dia destes
    Muito cedo, muito prestes.
ERMITÃO   Señora, yo me voy en tanto.

(Inês torna para Pêro Marques):

INÊS   Em tudo é boa a concrusão.
    Marido, aquele ermitão
    É um anjinho de Deus...
PÊRO   Corregê vós esses véus
    E ponde-vos em feição.
INÊS   Sabeis vós o que eu queria?
PÊRO   Que quereis, minha mulher?
INÊS   Que houvésseis por prazer
    De irmos lá em romaria.

PÊRO   Seja logo, sem deter
INÊS   Este caminho é comprido...
    Contai uma história, marido.
PÊRO   Bofá que me praz, mulher
INÊS   Passemos primeiro o rio.
    Descalçai-vos.
PÊRO    E pois como?
INÊS   E levar me-eis no ombro,
    Não me corte a madre o frio.

Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:

INÊS   Marido, assi me levade.
PÊRO    Ides à vossa vontade?
INÊS   Como estar no Paraíso!
PÊRO   Muito folgo eu com isso.
INÊS   Esperade ora, esperade!
    Olhai que lousas aquelas,
    Pera poer as talhas nelas!
PÊRO   Quereis que as leve?
INÊS    Si.
    Uma aqui e outra aqui.
    Oh como folgo com elas!

    Cantemos, marido, quereis?
PÊRO   Eu não saberei entoar..
INÊS   Pois eu hei só de cantar
    E vós me respondereis
    Cada vez que eu acabar:
    «Pois assi se fazem as cousas».
    Canta Inês Pereira:
INÊS   «Marido cuco me levades
    E mais duas lousas.»
PÊRO   «Pois assi se fazem as cousas.»
INÊS   «Bem sabedes vós, marido,
    Quanto vos amo.
    Sempre fostes percebido
    Pera gamo.
    Carregado ides, noss'amo,
    Com duas lousas.»
PÊRO   «Pois assi se fazem as cousas»
INÊS   «Bem sabedes vós, marido,
    Quanto vos quero.
    Sempre fostes percebido
    Pera cervo.
    Agora vos tomou o demo
    Com duas lousas.»
PÊRO   «Pois assi se fazem as cousas.»

E assi se vão, e se acaba o dito Auto.

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