Pages

quinta-feira, 21 de julho de 2011

OS LUSÍADAS - CANTO VIII - LUÍS DE CAMÕES

Canto VIII


Na primeira figura se detinha
O Catual que vira estar pintada,

Que por divisa um ramo na mão tinha,
A barba branca, longa e penteada.
Quem era e por que causa lhe convinha
A divisa que tem na mão tomada?
Paulo responde, cuja voz discreta
O Mauritano sábio lhe interpreta:

- «Estas figuras todas que aparecem,
Bravos em vista e feros nos aspeitos,
Mais bravos e mais feros se conhecem,
Pela fama, nas obras e nos feitos.
Antigos são, mas inda resplandecem
Co nome, entre os engenhos mais perfeitos.
Este que vês, é Luso, donde a Fama
O nosso Reino «Lusitânia» chama.

«Foi filho e companheiro do Tebano
Que tão diversas partes conquistou;
Parece vindo ter ao ninho Hispano
Seguindo as armas, que contino usou.
Do Douro, Guadiana o campo ufano,
Já dito EIísio, tanto o contentou
Que ali quis dar aos já cansados ossos
Eterna sepultura, e nome aos nossos.

«O ramo que lhe vês, pera divisa,
O verde tirso foi, de Baco usado;
O qual à nossa idade amostra e avisa
Que foi seu companheiro e filho amado.
Vês outro, que do Tejo a terra pisa,
Despois de ter tão longo mar arado,
Onde muros perpétuos edifica,
E templo a Palas, que em memória fica?

«Ulisses é, o que faz a santa casa
À Deusa que lhe dá língua facunda;
Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,
Cá na Europa Lisboa ingente funda.»
- «Quem será estoutro cá, que o campo arrasa
De mortos, com presença furibunda?
Grandes batalhas tem desbaratadas,
Que as Águias nas bandeiras tem pintadas!»

Assi o Gentio diz. Responde o Gama:
- «Este que vês, pastor já foi de gado;
Viriato sabemos que se chama,
Destro na lança mais que no cajado;
Injuriada tem de Roma a fama,
Vencedor invencíbil, afamado.
Não tem com ele, não, nem ter puderam,
O primor que com Pirro já tiveram.

«Com força, não; com manha vergonhosa
A vida lhe tiraram, que os espanta;
Que o grande aperto, em gente inda que honrosa,
As vezes leis magnânimas quebranta.
Outro está aqui que, contra a pátria irosa,
Degradado, connosco se alevanta;
Escolheu bem com quem se alevantasse
Pera que eternamente se ilustrasse.

Vês, connosco também vence as bandeiras
Dessas aves de Júpiter validas;
Que já naquele tempo as mais guerreiras
Gentes de nós souberam ser vencidas.
Olha tão sutis artes e maneiras
Pera adquirir os povos, tão fingidas:
A fatídica cerva que o avisa.
Ele é Sertório, e ela a sua divisa.

«OIha estoutra bandeira, e vê pintado
O grão progenitor dos Reis primeiros:
Nós Húngaro o fazemos, porém nado
Crêm ser em Lotaríngia os estrangeiros.
Despois de ter, cos Mouros, superado
Galegos e Lioneses cavaleiros,
À Casa Santa passa o santo Henrique,
Por que o tronco dos Reis se santifique.»

- «Quem é, me dize, estoutro que me espanta
(Pergunta o Malabar maravilhado),
Que tantos esquadrões, que gente tanta,
Com tão pouca, tem roto e destroçado?
Tantos muros aspérrimos quebranta,
Tantas batalhas dá, nunca cansado,
Tantas coroas tem, por tantas partes,
A seus pés derribadas, e estandartes?»

- «Este é o primeiro Afonso (disse o Gama),
Que todo Portugal aos Mouros toma;
Por quem no Estígio lago jura a Fama
De mais não celebrar nenhum de Roma.
Este é aquele zeloso a quem Deus ama,
Com cujo braço o Mouro imigo doma,
Pera quem de seu Reino abaxa os muros,
Nada deixando já pera os futuros.

«Se César, se Alexandre Rei, tiveram
Tão pequeno poder, tão pouca gente,
Contra tantos imigos quantos eram
Os que desbaratava este excelente,
Não creias que seus nomes se estenderam
Com glórias imortais tão largamente;
Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,
Vê que os de seus vassalos são notáveis.

«Este que vês olhar, com gesto irado,
Pera o rompido aluno mal sofrido,
Dizendo-lhe que o exército espalhado
Recolha, e torne ao campo defendido;
Torna o Moço, do velho acompanhado,
Que vencedor o torna de vencido:
Egas Moniz se chama o forte velho,
Pera leais vassalos claro espelho.

«Vê-lo cá vai cos filhos a entregar-se,
A corda ao colo, nu de seda e pano,
Porque não quis o Moço sujeitar-se,
Como ele prometera, ao Castelhano.
Fez com siso e promessas levantar-se
O cerco, que já estava soberano.
Os filhos e mulher obriga à pena:
Pera que o senhor salve, a si condena.

«Não fez o Cônsul tanto que cercado
Foi nas Forcas Caudinas, de ignorante,
Quando a passar por baxo foi forçado
Do Samnítico jugo triunfante.
Este, pelo seu povo injuriado,
A si se entrega só, firme e constante;
Estoutro a si e os filhos naturais
E a consorte sem culpa, que dói mais.

«Vês este que, saindo da cilada,
Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?
Já o Rei tem preso e a vila descercada;
Ilustre feito, dino de Mavorte!
Vê-lo cá vai pintado nesta armada,
No mar também aos Mouros dando a morte,
Tomando-lhe as galés, levando a glória
Da primeira marítima vitória:

É Dom Fuas Roupinho, que na terra
E no mar resplandece juntamente,
Co fogo que acendeu junto da serra
De Ábila, nas galés da Maura gente.
Olha como, em tão justa e santa guerra,
De acabar pelejando está contente.
Das mãos dos Mouros entra a felice alma,
Triunfando, nos Céus, com justa palma.

«Não vês um ajuntamento, de estrangeiro
Trajo, sair da grande armada nova,
Que ajuda a combater o Rei primeiro
Lisboa, de si dando santa prova?
Olha Heurique, famoso cavaleiro,
A palma que lhe nasce junto à cova.
Por eles mostra Deus milagre visto;
Germanos são os Mártires de Cristo.

«Um Sacerdote vê, brandindo a espada
Contra Arronches, que toma, por vingança.
De Leiria, que de antes foi tomada
Por quem por Mafamede enresta a lança:
É Teotónio Prior. Mas vê cercada
Santarém, e verás a segurança
Da figura nos muros que, primeira
Subindo, ergueu das Quinas a bandeira.


Vê-lo cá, donde Sancho desbarata
Os Mouros de Vandália em fera guerra;
Os imigos rompendo, o alferes mata
E Hispálico pendão derriba em terra:
Mem Moniz é, que em si o valor retrata
Que o sepulcro do pai cos ossos corra.
Dino destas bandeiras, pois sem falta
A contrária derriba e a sua exalta.

«Olha aquele que dece pela lança,
Com as duas cabeças dos vigias,
Ande a cilada esconde, com que alcança
A cidade, por manhas e ousadias.
Ela por armas toma a semelhança
Do cavaleiro que as cabeças frias
Na mão levava (feito nunca feito!):
Giraldo Sem Pavor é o forte peito.

«Não vês um Castelhano, que, agravado
De Afonso nono, Rei, pelo ódio antigo
Dos de Lara, cos Mouros é deitado,
De Portugal fazendo-se inimigo?
Abrantes vila toma, acompanhado
Dos duros Infiéis que traz consigo;
Mas vê que um Português com pouca gente
O desbarata e o prende ousadamente.

. «Martim Lopes se chama o cavaleiro
que destes levar pode a palma e o louro.
Mas olha um Eclesiástico guerreiro,
Que em lança de aço torna o bago de ouro.
Vê-lo, entre os duvidosos, tão inteiro
Em não negar batalha ao bravo Mouro;
Olha o sinal no Céu, que lhe aparece,
Com que nos poucos seus o esforço crece


. «Vês, vão os Reis de Córdova e Sevilha
Rotos, cos outros dous, e não de espaço;
Rotos? Mas antes mortos: maravilha
Feita de Deus, que não de humano braço.
Vês? Já a vila de Alcácere se humilha,
Sem lhe valer defesa ou muro de aço,
A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,
Que a coroa de palma ali coroa.

«Olha um Mestre que dece de Castela,
Português de nação, como conquista
A terra dos Algarves, e já nela
Não acha que por armas lhe resista.
Com manha, esforço e com benigna estrela,
Vilas, castelos, toma à escala vista.
Vês Tavila tomada aos moradores,
Em vingança dos sete caçadores?

«Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha
Silves, que ele ganhou com força ingente:
É Dom Paio Correia, cuja manha
E grande esforço faz enveja à gente.
Mas não passes os três que em França e Espanha
Se fazem conhecer perpètuamente
Em desafios, justas e tornéus,
Nelas deixando públicos troféus.

«Vê-los co nome vêm de aventureiros
A Castela, onde o preço sós levaram
Dos jogos de Belona verdadeiros,
Que com dano de alguns se exercitaram.
Vê mortos os soberbos cavaleiros
Que o principal dos três desafiaram,
Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,
Que pode não temer a lei Leteia.

«Atenta num que a fama tanto estende
Que de nenhum passado se contenta;
Que a Pátria, que de um fraco fio pende,
Sobre seus duros ombros a sustenta.
Não no vês tinto de ira, que reprende
A vil desconfiança, inerte e lenta,
Do povo, e faz que tome o doce freio
De Rei seu natural, e não de alheio?

«Olha: por seu conselho e ousadia,
De Deus guiada só e de santa estrela,
Só, pode o que impossíbil parecia:
Vencer o povo ingente de Castela.
Vês, por indústria, esforço e valentia,
Outro estrago e vitória, clara e bela,
Na gente, assi feroz como infinita,
Que entre o Tarteso e Guadiana habita?

«Mas não vês quási já desbaratado
O poder Lusitano, pela ausência
Do Capitão devoto, que, apartado,
Orando invoca a suma e trina Essência?
Vê-lo com pressa já dos seus achado,
Que lhe dizem que falta resistência
Contra poder tamanho, e que viesse
Por que consigo esforço aos fracos desse.

«Mas olha com que santa confiança,
Que «inda não era tempo» respondia,
Como quem tinha em Deus a segurança
Da vitória que logo lhe daria.
Assi Pompílio, ouvindo que a possança
Dos imigos a terra lhe corria,
A quem lhe a dura nova estava dando,
«Pois eu (responde) estou sacrificando.»

«Se quem com tanto esforço em Deus se atreve
Ouvir quiseres como se nomeia,
«Português Cipião» chamar-se deve;
Mas mais de «Dom Nuno Álvares» se arreia.
Ditosa pátria que tal filho teve!
Mas antes, pai! que, enquanto o Sol rodeia
Este globo de Ceres e Neptuno,
Sempre suspirará por tal aluno.

«Na mesma guerra vê que presas ganha
Estoutro Capitão de pouca gente;
Comendadores vence e o gado apanha
Que levavam roubado ousadamente;
Outra vez vê que a lança em sangue banha
Destes, só por livrar, co amor ardente,
O preso amigo, preso por leal:
Pero Rodrigues é do Landroal.

«Olha este desleal e como paga
O perjúrio que fez e vil engano;
Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga
E faz vir a passar o último dano:
De Xerez rouba o campo e quási alaga
Co sangue de seus donos Castelhano.
Mas olha Rui Pereira, que co rosto
Faz escudo às galés, diante posto.

«Olha que dezessete Lusitanos,
Neste outeiro subidos, se defendem
Fortes, de quatrocentos Castelhanos,
Que em derredor, pelos tomar, se estendem;
Porém logo sentiram, com seus danos,
Que não só se defendem, mas ofendem.
Dino feito de ser, no mundo, eterno,
Grande no tempo antigo e no moderno!

«Sabe-se antigamente que trezentos
Já contra mil Romanos pelejaram,
No tempo que os viris atrevimentos
De Viriato tanto se ilustraram,
E deles alcançando vencimentos
Memoráveis, de herança nos deixaram
Que os muitos, por ser poucos, não temamos;
Que despois mil vezes amostramos.

«Olha cá dons Infantes, Pedro e Henrique,
Progénie generosa de Joane;
Aquele faz que fama ilustre fique
Dele em Germânia, com que a morte engane;
Este, que ela nos mares o pubrique
Por seu descobridor, e desengane
De Ceita a Maura túmida vaidade,
Primeiro entrando as portas da cidade.

«Vês o Conde Dom Pedro, que sustenta
Dous cercos contra toda a Barbaria.
Vês, outro Conde está, que representa
Em terra Marte, em forças e ousadia;
De poder defender se não contenta
Alcácere, da ingente companhia;
Mas do seu Rei defende a cara vida,
Pondo por muro a sua, ali perdida.

«Outros muitos verias, que os pintores
Aqui também por certo pintariam;
Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores:
Honra, prémio, favor, que as artes criam.
Culpa dos viciosos sucessores,
Que degeneram, certo, e se desviam
Do lustre e do valor dos seus passados,
Em gostos e vaidades atolados.

«Aqueles pais ilustres que já deram
Princípio à geração que deles pende,
Pela virtude muito antão fizeram
E por deixar a casa que descende.
Cegos, que, dos trabalhos que tiveram,
Se alta fama e rumor deles se estende,
Escuros deixam sempre seus menores,
Com lhe deixar descansos corrutores!

«Outros também há grandes e abastados,
Sem nenhum tronco ilustre donde venham:
Culpa de Reis, que às vezes a privados
Dão mais que a mil que esforço e saber tenham.
Estes os seus não querem ver pintados,
Crendo que cores vãs lhe não convenham,
E, como a seu contrairo natural,
A pintura que fala querem mal.

«Não nego que há, contudo, descendentes
Do generoso tronco e casa rica,
Que, com costumes altos e excelentes,
Sustentam a nobreza que lhe fica;
E se a luz dos antigos seus parentes
Neles mais o valor não clarifica,
Não falta, ao menos, nem se faz escura;
Mas destes acha poucos a pintura.»

Assi está declarando os grandes feitos
O Gama, que ali mostra a vária tinta
Que a douta mão tão claros, tão perfeitos.
Do singular artífice ali pinta.
Os olhos tinha prontos e direitos
O Catual na história bem distinta;
Mil vezes perguntava e mil ouvia
As gostosas batalhas que ali via.

Mas já a luz se mostrava duvidosa,
Porque a alâmpada grande se escondia
Debaxo do Horizonte e, luminosa,
Levava aos Antípodas o dia,
Quando o Gentio e a gente generosa
Dos Naires da nau forte se partia,
A buscar o repouso que descansa
Os lassos animais, na noite mansa.

Entretanto, os arúspices famosos
Na falsa opinião, que em sacrifícios
Antevêm sempre os casos duvidosos
Por sinais diabólicos e indícios,
Mandados do Rei próprio, estudiosos,
Exercitavam a arte e seus ofícios,
Sobre esta vinda desta gente estranha,
Que às suas terras vem da ignota Espanha.

Sinal lhe mostra o Demo, verdadeiro,
De como a nova gente lhe seria
Jugo perpétuo, eterno cativeiro,
Destruição de gente e de valia.
Vai-se espantado o atónito agoureiro
Dizer ao Rei (segundo o que entendia)
Os sinais temerosos que alcançara
Nas entranhas das vítimas que oulhara.

A isto mais se ajunta que um devoto
Sacerdote da lei de Mafamede,
Dos ódios concebidos não remoto
Contra a divina Fé, que tudo excede,
Em forma do Profeta falso e noto
Que do filho da escrava Agar procede,
Baco odioso em sonhos lhe aparece,
Que de seus ódios inda se não dece.

E diz-lhe assi: - «Guardai-vos, gente minha,
Do mal que se aparelha pelo imigo
Que pelas águas húmidas caminha,
Antes que esteis mais perto do perigo!»
Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,
Espantado do sonho; mas consigo
Cuida que não é mais que sonho usado;
Torna a dormir, quieto e sossegado.

Torna Baco dizendo: - «Não conheces
O grão legislador que a teus passados
Tem mostrado o preceito a que obedeces,
Sem o qual fôreis muitos baptizados?
Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces?
Pois saberás que aqueles que chegados
De novo são, serão mui grande dano
Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.

«Enquanto é fraca a força desta gente,
ordena como em tudo se resista;
Porque, quando o Sol sai, fàcilmente
Se pode nele pôr a aguda vista;
Porém, despois que sobe claro e ardente.
Se agudeza dos olhos o conquista,
Tão cega fica, quanto ficareis
Se raízes criar lhe não tolheis.»

Isto dito, ele e o sono se despede
Tremendo fica o atónito Agareno;
Salta da cama, lume aos servos pede,
Lavrando nele o férvido veneno.
Tanto que a nova luz que ao Sol precede
Mostrara rosto angélico e sereno,
Convoca os principais da torpe seita,
Aos quais do que sonhou dá conta estreita.

Diversos pareceres e contrários
Ali se dão, segundo o que entendiam;
Astutas traições, enganos vários,
Perfídias, inventavam e teciam;
Mas, deixando conselhos temerários,
Destruição da gente pretendiam,
Por manhas mais sutis e ardis milhores,
Com peitas adquirindo os regedores.

Com peitas, ouro e dádivas secretas
Conciliam da terra os principais;
E com razões notáveis e discretas
Mostram ser perdição dos naturais,
Dizendo que são gentes inquietas,
Que, os mares discorrendo Ocidentais,
Vivem só de piráticas rapinas,
Sem Rei, sem leis humanas ou divinas.

Oh, quanto deve o Rei que bem governa
De olhar que os conselheiros ou privados
De consciência e de virtude interna
E de sincero amor sejam dotados!
Porque, como estê posto na superna
Cadeira, pode mal dos apartados
Negócios ter notícia mais inteira
Do que lhe der a língua conselheira.

Nem tão-pouco direi que tome tanto
Em grosso a consciência limpa e certa,
Que se enleve num pobre e humilde manto,
Onde ambição acaso ande encoberta.
E, quando um bom em tudo é justo e santo,
E em negócios do mundo pouco acerta;
Que mal co eles poderá ter conta
A quieta inocência, em só Deus pronta.

Mas aqueles avaros Catuais
Que o Gentílico povo governavam,
Induzidos das gentes infernais,
O Português despacho dilatavam.
Mas o Gama, que não pretende mais,
De tudo quanto os Mouros ordenavam,
Que levar a seu Rei um sinal certo
Do mundo que deixava descoberto,

Nisto trabalha só; que bem sabia
Que despois, que levasse esta certeza,
Armas e naus e gentes mandaria
Manuel, que exercita a suma alteza,
Com que a seu jugo e Lei someteria
Das terras e do mar a redondeza;
Que ele não era mais que um diligente
Descobridor das terras do Oriente.

Falar ao Rei gentio determina,
Por que com seu despacho se tornasse,
Que já sentia em tudo da malina
Gente impedir-se quanto desejasse.
O Rei, que da notícia falsa e indina
São era de espantar se s'espantasse,
Que tão crédulo era em seus agouros,
E mais sendo afirmados pelos Mouros,

Este temor lhe esfria o baixo peito.
Por outra parte, a força da cobiça,
A quem por natureza está sujeito,
Um desejo imortal lhe acende e atiça:
Que bem vê que grandíssimo proveito
Fará, se, com verdade e com justiça,
O contrato fizer, por longos anos,
Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.

Sobre isto, nos conselhos que tomava,
Achava mui contrários pareceres;
Que naqueles com quem se aconselhava
Executa o dinheiro seus poderes.
O grande Capitão chamar mandava,
A quem chegado disse:- «Se quiseres
Confessar-me a verdade limpa e nua,
Perdão alcançarás da culpa tua.

«Eu sou bem informado que a embaxada
Que de teu Rei me deste, que é fingida;
Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,
Mas vagabundo vás passando a vida.
Que quem da Hespéria última alongada,
Rei ou senhor de insânia desmedida,
Há-de vir cometer, com naus e frotas,
Tão incertas viagens e remotas?

«E se de grandes Reinos poderosos
O teu Rei tem a Régia majestade,
Que presentes me trazes valerosos,
Sinais de tua incógnita verdade?
Com peças e dões altos, sumptuosos,
Se lia dos Reis altos a amizade;
Que sinal nem penhor não é bastante
As palavras dum vago navegante.

«Se porventura vindes desterrados,
Como já foram homens d'alta sorte,
Em meu Reino sereis agasalhados,
Que toda a terra é pátria pera o forte;
Ou se piratas sois, ao mar usados,
Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte,
Que, por se sustentar, em toda idade
Tudo faz a vital necessidade.»

Isto assi dito, o Gama, que já tinha
Suspeitas das insídias que ordenava
O Mahomético ódio, donde vinha
Aquilo que tão mal o Rei cuidava,
Cüa alta confiança, que convinha,
Com que seguro crédito alcançava,
Que Vénus Acidália lhe influía,
Pais palavras do sábio peito abria:

- «Se os antigos delitos que a malícia
Humana cometeu na prisca idade
Não causaram que o vaso da nequícia,
Açoute tão cruel da Cristandade,
Viera pôr perpétua inimicícia
Na geração de Adão, co a falsidade,
Ó poderoso Rei, da torpe seita,
Não conceberas tu tão má suspeita.

«Mas, porque nenhum grande bem se alcança
Sem grandes opressões, e em todo o feito
Segue o temor os passos da esperança,
Que em suor vive sempre de seu peito,
Me mostras tu tão pouca confiança
Desta minha verdade, sem respeito
Das razões em contrário que acharias
Se não cresses a quem não crer devias.

«Porque, se eu de rapinas só vivesse,
Undívago ou da pátria desterrado,
Como crês que tão longe me viesse
Buscar assento incógnito e apartado?
Por que esperanças, ou por que interesse
Viria exprimentando o mar irado,
Os Antárticos frios e os ardores
Que sofrem do Carneiro os moradores?

«Se com grandes presentes d'alta estima
O crédito me pedes do que digo,
Eu não vim mais que a achar o estranho clima
Onde a Natura pôs teu Reino antigo;
Mas, se a Fortuna tanto me sublima,
Que eu torne à minha pátria e Reino amigo,
Então verás o dom soberbo e rico
Com que minha tornada certifico.

«Se te parece inopinado feito
Que Rei da última Hespéria a ti me mande,
O coração sublime, o régio peito,
Nenhum caso possíbil tem por grande.
Bem parece que o nobre e grão conceito
Do Lusitano espírito demande
Maior crédito e fé de mais alteza,
Que creia dele tanta fortaleza

«Sabe que há muitos anos que os antigos
Reis nossos firmemente propuseram
De vencer os trabalhos e perigos
Que sempre às grandes cousas se opuseram;
E, descobrindo os mares inimigos
Do quieto descanso, pretenderam
De saber que fim tinham e onde estavam
As derradeiras praias que lavavam.

«Conceito dino foi do ramo claro
Do venturoso Rei que arou primeiro
O mar, por ir deitar do ninho caro
O morador de Abila derradeiro;
Este, por sua indústria e engenho raro,
Num madeiro ajuntando outro madeiro,
Descobrir pôde a parte que faz clara
De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.

«Crescendo cos sucessos bons primeiros
No peito as ousadias, descobriram,
Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,
Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.
De África os moradores derradeiros
Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,
Foram vistos de nós, atrás deixando
Quantos estão os Trópicos queimando.

«Assi, com firme peito e com tamanho
Propósito vencemos a Fortuna,
Até que nós no teu terreno estranho
Viemos pôr a última coluna.
Rompendo a força do líquido estanho,
Da tempestade horrífica e importuna,
A ti chegámos, de quem só queremos
Sinal que ao nosso Rei de ti levemos.

«Esta é a verdade, Rei; que não faria
Por tão incerto bem, tão fraco prémio,
Qual, não sendo isto assi, esperar podia,
Tão longo, tão fingido e vão proémio;
Mas antes descansar me deixaria
No nunca descansado e fero grémio
Da madre Tétis, qual pirata inico,
Dos trabalhos alheios feito rico.

«Assi que, ó Rei, se minha grão verdade
Tens por qual é, sincera e não dobrada,
Ajunta-me ao despacho brevidade,
Não me impidas o gosto da tornada;
E, se inda te parece falsidade,
Cuida bem na razão que está provada,
Que com claro juízo pode ver-se,
Que fácil é a verdade d'entender-se.»

A tento estava o Rei na segurança
Com que provava o Gama o que dizia;
Concebe dele certa confiança,
Crédito firme, em quanto proferia;
Pondera das palavras a abastança,
Julga na autoridade grão valia,
Começa de julgar por enganados
Os Catuais corrutos, mal julgados.

Juntamente, a cobiça do proveito
Que espera do contrato Lusitano
O faz obedecer e ter respeito.
Co Capitão, e não co Mauro engano.
Enfim ao Gama manda que direito
As naus se vá e, seguro dalgum dano,
Possa a terra mandar qualquer fazenda
Que pela especiaria troque e venda.

Que mande da fazenda, enfim, lhe manda
Que nos Reinos Gangéticos faleça,
S'algüa traz idónea lá da banda
Donde a terra se acaba e o mar começa.
Já da real presença veneranda
Se parte o Capitão, pera onde peça
Ao Catual que dele tinha cargo,
Embarcação, que a sua está de largo.

Embarcação que o leve às naus lhe pede,
Mas o mau Regedor, que novos laços
Lhe maquinava, nada lhe concede,
Interpondo tardanças e embaraços.
Co ele parte ao cais, por que o arrede
Longe quanto puder dos régios paços,
Onde, sem que seu Rei tenha notícia
Faça o que lhe ensinar sua malícia.

Lá bem longe lhe diz que lhe daria
Embarcação bastante em que partisse,
Ou que pera a luz crástina do dia
Futuro, sua partida diferisse.
Já com tantas tardanças entendia
O Gama que o Gentio consentisse
Na má tenção dos Mouros, torpe e fera,
O que dele até'li não entendera.

Era este Catual um dos que estavam
Corrutos pela Maumetana gente,
O principal por quem se governavam
As cidades do Samorim potente.
Dele sòmente os Mouros esperavam
Efeito a seus enganos torpemente;
Ele, que no concerto vil conspira,
De suas esperanças não delira.

O Gama com instância lhe requer
Que o mande pôr nas naus, e não lhe val;
E que assi lho mandara, lhe refere,
O nobre sucessor de Perimal.
Por que razão lhe impede e lhe difere
A fazenda trazer de Portugal?
Pois aquilo que os Reis já têm mandado
Não pode ser por outrem derrogado.

Pouco obedece o Catual corruto
A tais palavras; antes, revolvendo
Na fantasia algum sutil e astuto
Engano diabólico e estupendo,
Ou como banhar possa o ferro bruto
No sangue avorrecido, estava vendo,
Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,
Por que nenhüa à pátria mais tornasse.

Que nenhum torne à pátria só pretende
O conselho infernal dos Maumetanos,
Por que não saiba nunca onde se estende
A terra Eoa o Rei dos Lusitanos.
Não parte o Gama, enfim, que lho defende
O Regedor dos Bárbaros profanos;
Nem sem licença sua ir-se podia,
Que as almadias todas lhe tolhia.

Aos brados e razões do Capitão
Responde o Idolátra, que mandasse
Chegar à terra as naus, que longe estão,
Por que milhor dali fosse e tornasse.
- «Sinal é de inimigo e de ladrão
Que lá tão longe a frota se alargasse,
(Lhe diz), porque do certo e fido amigo
É não temer do seu nenhum perigo.»

Nestas palavras o discreto Gama
Enxerga bem que as naus deseja perto
O Catual, por que com ferro e flama
Lhas assalte, por ódio descoberto.
Em vários pensamentos se derrama;
Fantasiando está remédio certo
Que desse a quanto mal se lhe ordenava;
Tudo temia, tudo, enfim, cuidava.

Qual o reflexo lume do polido
Espelho de aço ou de cristal fermoso,
Que, do raio solar sendo ferido,
Vai ferir noutra parte, luminoso,
E, sendo da ouciosa mão movido,
Pela casa, do moço curioso,
Anda pelas paredes e telhado
Trémulo, aqui e ali, e dessossegado:

Tal o vago juizo fluctuava
Do Gama preso, quando lhe lembrara
Coelho, se por acaso o esperava
Na praia cos batéis, como ordenara.
Logo secretamente lhe mandava
Que se tornasse à frota, que deixara,
Não fosse salteado dos enganos
Que esperava dos feros Maumetanos.

Tal há-de ser quem quer, co dom de Marte,
Imitar os Ilustres e igualá-los:
Voar co pensamento a toda parte,
Adivinhar perigos e evitá-los,
Com militar engenho e sutil arte,
Entender os imigos e enganá-los,
Crer tudo, enfim; que nunca louvarei
O capitão que diga: «Não cuidei.»

Insiste o Malabar em tê-lo preso
Se neo manda chegar a terra a armada;
Ele, constante e de ira nobre aceso,
Os ameaços seus não teme nada;
Que antes quer sobre si tomar o peso
De quanto mal a vil malícia ousada
Lhe andar armando, que pôr em ventura
A frota de seu Rei, que tem segura.

Aquela noite esteve ali detido
E parte do outro dia, quando ordena
De se tornar ao Rei; mas impedido
Foi da guarda que tinha, não pequena.
Comete-lhe o Gentio outro partido,
Temendo de seu Rei castigo ou pena
Se sabe esta malícia, a qual asinha
Saberá, se mais tempo ali o detinha.

Diz-lhe que mande vir toda a fazenda
Vendíbil que trazia, pera a terra,
Pera que, devagar, se troque e venda;
Que, quem não quer comércio, busca guerra.
Posto que os maus propósitos entenda
O Gama, que o danado peito encerra,
Consente, porque sabe por verdade
Que compra co a fazenda a liberdade.

Concertam-se que o Negro mande dar
Embarcações idóneas com que venha;
Que os seus batéis não quer aventurar
Onde lhos tome o imigo, ou lhos detenha.
Partem as almadias a buscar
Mercadoria Hispana que convenha;
Escreve a seu irmão que lhe mandasse
A fazenda com que se resgatasse.

Vem a fazenda a terra, aonde logo
A agasalhou o infame Catual;
Co ela ficam Álvaro e Diogo,
Que a pudessem vender pelo que val.
Se mais que obrigação, que mando e rogo,
No peito vil o prémio pode e val,
Bem o mostra o Gentio a quem o entenda,
Pois o Gama soltou pela fazenda.

Por ela o solta, crendo que ali tinha
Penhor bastante, donde recebesse
Interesse maior do que lhe vinha
Se o Capitão mais tempo detivesse.
Ele, vendo que já lhe não convinha
Tornar a terra, por que não pudesse
Ser mais retido, sendo às naus chegado
Nelas estar se deixa descansado.

Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

A Polidoro mata o Rei Treício,
Só por ficar senhor do grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com a filha de Acriso a chuva d'ouro;
Pode tanto em Tarpeia avaro vício
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quási afogada em pago morre.

Este rende munidas fortalezas;
Faz trédoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.

Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!

Nenhum comentário:

Postar um comentário