Se queres ser feliz, não contabilizes as perdas do ano velho, nem recolhas pedras em tuas aljavas. Coleciona afetos, permite que lagartas se transformem em borboletas, silencia as palavras sem raízes no coração.
Não siga os passos dos sonegadores de alvíssaras, mancos de bondade, cegos de sutilezas, ébrios de ambições e medrosos perante a ousadia de viver. Nem te espelhes nos que cercam a alma com arame farpado, abrem com foices os caminhos na vida e, ainda assim, não sabem o rumo a tomar; traçam labirintos em seus mapas imaginários, enfeitam-se com buquês de impropérios e rasgam o ventre da água com os seixos adormecidos no leito de seus pesadelos. Segue o conselho de Ulisses e foge dos que mastigam lótus em busca da amnésia que produz ilusão e felicidade.
Rasga o escafandro dos teus temores, reveste-te de ensolaradas primícias e desdobra a subjetividade, rompe a casca do ego e prende com os artífices da paz que, entre conflitos, exalam suavidade, não achibatam com a língua a fama alheia, nem naufragam nas próprias feridas. E jamais deixam escapar das mãos as rédeas da paciência e nunca recorrem às esporas da ansiedade.
Abraça os que tecem com o olhar o perfil da alma e, no silêncio dos toques, curam a pele de toda a aspereza. Sê portador do ovo de promessas, sem que a ilusão o quebre e, crédulo, dobra os joelhos diante do mistério divino. Identifica as trilhas aventurosas da vida mapeadas na geografia de tua pele e não te envergonhes da topografia disforme de teu corpo.
Abre cominhos com os próprios passos, cultiva em teu canteiro a rosa-dos-ventos, dá boas-vindas aos que colhem borboletas ao alvorecer e sabem que a beleza é filha do silêncio. Acolhe os que garimpam maiêuticas nos campos da miséria e trazem seus corações robustos de indignação, sem jamais olvidar o semelhante. E também os que, montados na indiferença, atropelam sutilezas, até que a dor lhes abra a porta do amor.
Deixa a chuva embriagar-te, oferta luas à namorada e faz da poesia a tua lógica. Vai ao encontro dos colecionadores de araucárias, que enfeitam de sonhos sua florestas e, na primavera, colhem frutos de plenitude. E dos que brincam de amarelinha ao entardecer e desconfiam dos adultos exilados da alegria. Nas esquinas, distribui aos passantes moedas de sol. E te aparta dos que, ao desjejum, abrem suas caixas de mágoas e recontam uma a uma, gravando no caderno do afeto dívidas e juros.
Caminha sobre tatames; por ter pressa de chegar, jamais corras. E presta socorro aos navegadores solitários, pilotos cegos e peregrinos mancos, que se arrastam pelas trilhas da desesperança.
Ergue teu cálice aos trovadores do inaudito e aos que conhecem o segredo de fazer brotar água de pedra. E olha com suspeita os que mantêm, em cada esquina, oficinas de conserto do mundo, mas desconhecem as ferramentas que arrancam as dobradiças do egoísmo.
Aplaude as bailarinas fantasiadas de anjos que dançam, na ponta dos pés, sobre os anéis de Saturno, e os palhaços que acordam em ti a criança que imprime juízo no adulto. Descobre Deus escondido numa compota de figos em calda ou no vaga-lume que risca um ponto de luz na noite desestrelada. E nos que aprendem a morrer, todos os dias, para os apegos de desimportância e, livres e leves, alçam vôo rumo ao oceano da transcendência.
Não plantes corvos nas janelas da alma, nem embebedes o coração de sandice. Cultiva ninhos de pássaros no beiral da saudade, coleciona no espírito aquarelas outonais, trafega pelas vias interiores e não temas as curvas abissais da oração.
Reverencia o silêncio como matéria-prima do amor e arranca das cordas da dor melódicas carícias. Recostado em leitos de hortênsias, borda alfombras de ternura com os delicados fios dos sentimentos.
Traz o embornal repleto de relâmpagos e, no peito, a saudade do futuro. Semeia indignações, mergulha todas as manhãs nas fontes da verdade e, no labirinto da intuição, identifica a porta que os sentidos não vêem e a razão não alcança.
Recolhe cacos de mágoas pelas ruas, a fim de atirá-los no lixo do olvido, e guarda recatados os olhos no recanto da sobriedade. Pula corda com a linha do horizonte e dá as mãos aos que suprimem a letra erre do verbo armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.
Sê condescendente com os que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios, e também com os poetas sem poemas, os músicos sem melodias, os pintores sem cores e os escritores sem palavras. E com os que jamais encontraram a pessoa a quem declarar todo o amor que os fecundam em gravidez inefável.
Proclama tua cumplicidade com os navegadores de transcendência e os filhos da misericórdia que dormem acobertados pela compaixão. E com todos os que contemplam ociosos o entardecer, observando como o Menino entra na boca da noite montado em seu monociclo solar.
Não te deixes seduzir pelo perfume das alturas, nem escales os picos em que os abutres chocam ovos. Senta-te à mesa dos que destelham os tetos da ambição e edificam suas casas em torno da cozinha.
No leito de núpcias, promove despudorada liturgia eucarística, transubstancia o corpo em copo inundado do vinho embriagador da perda de si no outro. Reparte Deus em fatias de pão e convoca os famélicos à mesa feita com madeira de lei e coberta por toalha bordada de cumplicidades. Secas lágrimas no consolo da fé e planta no chão em que pisas as sementes do porvir. E cria hipocampos em aquários de mistério e guarda o segredo da geometria da quadratura do círculo.
Farto de chocolate na esbórnia pascal de lucidez crítica, não temas pronunciar palavras onde a mentira costura bocas e enjaula consciências. E brinda a todos que, com o rosto lavado nas maquiagens de Narciso, dobram os joelhos à dignidade dos carvoeiros.
Decifra enigmas sem revelar inconfidências e, nu, abraça epifanias sob cachoeiras de magnólias. Percorre os bosques onde vicejam anjos barrocos e te banha nas correntezas do insólito, deixando os cabelos brancos flutuar sobre a saciedade de anos bem vividos. De mãos dadas com todos que dão ouvidos à sinfonia cósmica, baila com os astros ao ritmo de siderais incertezas nos salões da Via Láctea.
BETTO, Frei. 1944 – A arte de semear estrelas/
Frei Betto – Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
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