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sábado, 1 de novembro de 2014

SAUDADE

Eis a causa da angústia e indiferença que, a cada pedaço do dia, vem consumindo Beto avassaladoramente. O rapaz, intelectual que é, a princípio, pensou ser nostalgia. Verificou que nostalgia é algo poético, não é o caso. Seu mal é cru, tem gosto de rejeição. Então, prefere que, quando mencionada a figura dela, trate de saudade. Ela é a personificação da saudade. Beto é estudante de Letras e, nos últimos dias, andou afogado nos livros de literatura, procurando esquivar-se das reminiscências que insistem em dar o ar da graça nas situações mais costumeiras. Lá se vão duas madrugadas varadas. O hálito de Beto é café puro, dá até para distinguir a marca. Os poucos que o conhecem andam estranhando as olheiras mais acentuadas que nunca. O tempo passa feito criança. Criança de rua, que bate carteira, relógio, pulseira, comida ! Comida para manter sua energia de batedor de carteira nos grandes centros, cheios de gente boa pinta e burguesa. Esses mesmos meninos são acordados aos berros pelos donos das lojas onde, nas calçadas, eles dormem, essa gente boa pinta. Beto vê essas crianças todos os dias. Vive no Sudeste. Onde gente burguesa cruza com criança de rua todo dia, assim como o tempo passa nas carreiras levando, ao longo do vento, essas histórias para gente como Beto. Beto disse ter enorme carinho em ler Capitães da Areia. — E aqui, leitor, faço questão de expôr diretamente minha opinião sobre a obra de Jorge Amado. Tive, assim como Beto, um sentimento de amor gigantesco durante a leitura maravilhosamente engrandecedora. Recomendo por demais. — Então, o rapaz vê as crianças de tal forma como visse um parente próximo. Embora, de tão descuidado que anda, perdera a carteira para um desses moleques há poucos dias.
Não lhe fez falta, apesar da vida de estudante. Imaginou que os garotos tenham se divertido com aqueles vinte e poucos reais. Imaginou que tenham compartilhado alguns pães pela noite, imaginou que tenham saciado parte da sede que lhes acomete todo mísero dia. Tais pensamentos arrancaram um leve sorriso e algumas lágrimas do rosto sonolento do rapaz. E, naquele dia, não fumou. Esperou bater as 5:00 h da manhã, pegou seu sobretudo velho, pôs a boina "à lá Neruda" e retirou-se do quarto onde permanecera alguns dias. Saiu de casa em direção ao litoral, onde seu Manoel já abria o quiosque. 
Cumprimentou seu Manoel, cordial como de costume. O velhote deu bom dia e um sorriso largo. Beto era cliente antigo. Tinha mania de passar horas no quiosque de seu Manoel, vendo a linda paisagem que se escondia logo atrás. Pediu um café e duas bolachas, como era seu hábito.
Então, perguntou seu Manoel:
— Que faz por aqui tão cedo, meu filho ?
— Precisava ver o sol de perto, seu Manoel.
— É lindo, não é, meu filho ?
Beto tinha apenas os olhos fixos no sol que ainda nascia aos poucos, apesar do horário. Seu Manoel teceu mais um ou dois elogios à natureza ali presente. O rapaz já estava metido em seus pensamentos, com olhos miúdos de quem não dorme há dias. O velhote trouxe-lhe um café, fez um também para si e sentou-se ao lado do garoto. Beto agradeceu, pôs duas colheres de açúcar e tornou a beber. Depois de uma ou duas goladas, acendeu um cigarro. Não tocou nas bolachas.
Seu Manoel perguntou:
— Há quantos dias não dorme, meu rapaz ?
— Três. Disse ele acompanhado de um leve sorriso seguido dum bocejo.
O velhote sorriu. Olhou o sol por uns instantes e a calmaria do mar. Era um dia lindo. Seu Manoel tinha uma vitrola velha que sempre o acompanhava por onde quer que fosse. Naquela hora, um homem com voz calma e grave, acompanhado dum violão estilo country, tocava na geringonça.
Seu Manoel era um velhote esperto, conhecia das malandragens e dramaturgias da vida, sabia bem o que era aquela falta de vontade estampada na expressão do rosto do rapaz. Claro, só podia ser.
— Quem é ela, meu filho ?
Beto tinha um cotovelo apoiado no balcão do quiosque e uma mão no queixo, com a outra rodeava a borda da xícara com o dedo indicador.
Ao ouvir o velhote, ficou imóvel. Ninguém, nem mesmo em casa, sabia o que se passava com o rapaz, nada notavam. Beto espantou-se a princípio. Fitou o velhote com certo ar de gratidão e respondeu:
— É a saudade, seu Manoel. Saudade dum abraço, dum beijo e duma fala com ternura. Uma fala que só a saudade tem agora, para não falar do resto...
Nos olhos miúdos de sono do rapaz, seu Manoel avistou de que se tratava o rapaz, e quase transbordou.
Beto conteve a carga de lembranças que estava tendo com uma golada seca no café já frio, como se bebesse cachaça.
— Eu te entendo, rapaz. Teve um tempo que fiquei feito tu. Mas, com uma diferença: no lugar do café, era cachaça. De resto, fumava e quase não dormia do mesmo jeito. Já fosse atrás ?
Beto achou graça na fala do velhote. Talvez por alívio de encontrar alguém que o entendera.
— E como fui. Só rejeição...
O velho se retirou do banco. Entrou no quiosque. Olhou no relógio e já passavam das 5:30. Fez outro café e o trouxe. Voltou a sentar-se no banco e pôs outra xícara em frente ao rapaz.
— Esse é por conta da casa. Disse.
Num instante, o velho puxou uma foto antiga do bolso. Comida pelo tempo e pelo contato constante ao qual era exposta.
— Pra tu ver que é verdade.
Pôs a foto ao lado da xícara de Beto. Era duma moça graciosa. Olhos claros, tom de verde mar, cabelos de cacho e um sorriso de uma ponta à outra, muitíssimo encantador. Atrás, datava de 1967, numa tinta bem apagada. 
— Tanto tempo assim ? Perguntou Beto espantado.
O velhote, olhando seguramente para o sol, disse:
— Meu maior erro, meu filho — e fez uma expressão triste retendo o olhar à xícara — foi nunca mais ter ido procurá-la. Quando era menino, assim na tua idade, eu era orgulhoso e vaidoso. Enquanto eu ouvia dizer que ela sofria, eu queria mesmo era esquecer aquela história. Nunca nada tinha me afetado como aquela história. Eu era quieto, bebia sozinho, em casa mesmo. Sempre gostei de poesia e era lendo elas que chorava noites inteiras.
Hoje — e parou um momento —...
Tomou um gole de café, reparou no sol outra vez.
continuou:
— Ela tem uma família toda. Volta e meia um filho dela vem aqui no quiosque tomar uma água de coco. Cada rapaz alto, bem apessoado, parecidos com ela. Ora comentam que a mãe falava que conhecera um rapaz na juventude e que amara o rapaz como ninguém. Mas pede segredo aos filhos e diz que é um velhote que tem um quiosque na praia. Os garotos até fazem ideia de que eu seja o tal velhote, mas eu sempre nego, mudando de assunto.
E eu, meu rapaz, eu só tenho esse quiosque e uma casinha mais pro interior.
Beto o olhava pálido, boquiaberto. Não fazia ideia que aquele velhote tão alegre passara por tal situação. Esqueceu o café e deixou cair o cigarro. Quis falar, mas travou.
O velhote riu e deu o ultimato:
— Não se incomode tanto com as rejeições , meu rapaz. Sei que doem, mas você pode ser mais forte que elas, mesmo que tenha de se esforçar.
Vá e faça dela e com ela sua família. E só apareça no meu quiosque para me apresentá-la. O café será por minha conta.


MACÊDO, Gustavo de.

TU JÁ SONHOU COMIGO?

Marina estranhou quando, do nada, um rapaz se aproximou dela e, olhando em seus olhos, ele disse:
— Tu já sonhou comigo?
Marina, branca que era, corou. Os olhos se encheram de surpresa. Deu um sorriso involuntário de tão espontâneo que saiu.
O rapaz também sorriu, sem a mínima vergonha. Mas quem era aquele fulano tão cara de pau ? Se perguntava Marina. E, sem querer, foi tomada por aquela dúvida.
Ora, poderia ser o garçom, pensou. Mas que garçom atrevido seria ! E ele não usava farda. Ao contrário. O sujeito parecia nunca ter usado uma farda na vida, de tão despojado que era. Vestia uma camiseta preta que tivera as mangas cortadas para se tornar camiseta, calção de jogo meio desbotado, talvez pela velhice do tecido. Mas tinha um sorriso simpático, um sorriso largo que convidava para uma prosa, aqui e agora, assim, "carpe diem".
Ele tinha um andar tão desajeitado, reparou Marina quando ele se aproximava, que não havia condições de ser um jogador, mesmo amador. De fato, ele não tinha aquele gingado de ousadia e alegria no andar, usava sandálias bem simples e o semblante do rapaz realmente não se encaixava com o desses boleiros estilosos: Era barbudo, carregava nos olhos olheiras de quem quase não dorme, tinha tudo para ser um chato logo de cara, porém, carregava uma suavidade em toda a face, brandura que contagiava. E aquele brinco de argola quebrara de vez qualquer postura séria possivelmente atribuída ao rapaz.
Minutos antes, Marina se encontrava sozinha na mesa onde estava, comendo um pão frio e bebendo um café meio morno. Estava lá na lanchonete do seu Juju. E, naquele dia — raro —, a lanchonete se encontrava quase vazia. Seu Juju era sensação na cidade, fazia um cachorro quente como ninguém. Fora a alegria típica que sempre o acompanhava, seu Juju não negava um sorriso a ninguém. E era impossível não sorrir de volta. Seu Juju tinha uns olhos orientais que praticamente sumiam sempre que ele sorria, como vivia sorrindo, estava sempre com uma expressão jocosa estampada no rosto. Marina dera duas mordidas no pão e o deixara de lado, o olhava com uma cara feia, feito essas crianças birrentas. A garota estava com os cabelos assanhados, a cara feia olhando o pão frio, unhas de esmalte ruído e uma expressão de desgaste que se espalhava pela figura dela. Faltava pouco para completar o rótulo — clássico — de menino buchudo: Catarro escorrendo e um pijaminha velho e rasgado que um dia fora rosa.
Entrou um rapaz na lanchonete. O rapaz era cliente antigo de seu Juju e sempre o cumprimentava com tamanha felicidade. Embora fizesse sempre aquele carnaval ao cumprimentar o oriental, todos ainda olhavam estranhamente por um breve momento. Nem seu Juju, muito menos o rapaz, se incomodavam com isso.
O rapaz sentou-se ao balcão e pediu um suco de jaca com leite. Como de costume. Terminou seu suco, pagou e, quando pelo caminho da saída, avistou a figura triste duma moça sozinha. Achou intrigante. O rapaz tinha um ar de palhaço, e tinha mesmo o dom de fazer as pessoas rirem com facilidade. Perspicaz que era, logo formulou algo e se aproximou dela. E lançou uma pergunta acompanhada dum sorriso:
— Tu já sonhou comigo?
Pouco depois, disse:
— Rodrigo. E já foi logo puxando a cadeira e sentando ao lado da moça.
Ela apenas tinha um sorriso leve e as bochechas visivelmente coradas.
— Tu é doido? Disse ela ainda com um leve sorriso.
Ele riu e olhou ao redor. Estava mesmo vazia a lanchonete naquele dia.
Ele a olhou nos olhos. Ela tinha uma expressão de quem não acreditava naquilo.
Parece que esquecia, a medida que aquele relógio velho pregado na parede da lanchonete corria os ponteiros, que andava sem vontade havia três meses. Aos poucos, ia perdendo a postura de "menina buchuda". Claramente tinha os olhos mais alegres.
— E tu, tem nome? Disse Rodrigo.
— Marina.
Clichê, ele disse:
— Tem cara mesmo. E sorriu.
Continuou ele:
— Pensava que tu ia me mandar pegar o beco, com a cara de menina birrenta que tava...
— Folgado você, né?
— Minha mãe quem diz. Deu uma gargalhada leve.
Rodrigo sempre levava um lápis no bolso e um bloquinho já meio velho.
Puxou os dois do bolso e rabiscou algo com uma letra troncha, difícil de entender.
— Espia se tu gosta. E mostrou dois versos a ela.
— Foi tu que fez?
— Parece ser meu tipo?
— A letra ? Tua cara. Agora, ela quem gargalhou da cara que fez o rapaz, e com gosto.
— Tá se soltando, né, Maria? Ironizou.
— Marina, poeta.
— Engraçado, tem um desenho aí que parece contigo. 
Tomou o bloquinho da mão da moça e pôs numa folhinha miúda que continha uma bola com dois pontos e um traço fazendo alusão a um sorriso.
— Ah, bestão. Quem é birrento agora?
Ele deu língua e depois sorriu.
De repente, Rodrigo se levantou e fez sinal de despedida com a mão. Deu dois passos e olhou a moça nos olhos. Deu um último sorriso e saiu da lanchonete do seu Juju.
Marina nada entendia. Estava claramente confusa com aquele contraste. Ora ele chegara do nada e oferecia um sorriso e uma pergunta sem sentido. E, do nada, saia sem dar explicação. "Típico dos homens", pensou. Mas ela sentiu atração pela simpatia de Rodrigo. Tomou atitude, afinal, era mulher, era decidida, destemida. Levantou-se para perseguir o rapaz e inquirir, afinal, o que o desgraçado queria com aquilo, se era só brincadeira ou se, de repente, ele era esquizofrênico. Quando reparou uma folhinha miúda e amarela sobre a mesa. Lá estavam os dois versos e, atrás, o número do rapaz.

MACÊDO, Gustavo de.


PALAVRAS RESSONANTES

Sabe aquela música que você gosta, mas, de tanto ela ecoar na cabeça, ela se torna torturante, quase que impiedosa? Era o que perturbava Gabriel. Embora não fosse bem uma música, o eco e as demais características estão valendo. O desgraçado andava pensando até em consultar um psiquiatra. Era um caso crítico.
Há um bom tempo, Gabriel já não vinha em paz. Era atordoado, durante grande parte do dia, por uma voz, um gesto, um rosto, um sorriso, um olhar. Estranho, de fato, o estado do rapaz. Aos seus amigos mais próximos, aquilo era um mistério. E dos mais sinistros. Daquele que dá um arrepio só de imaginar. E causava calafrios no rapaz. Em resposta aos amigos, ele dizia apenas "É minha culpa". Fala acompanhada de um semblante transtornado. Ao proferir a frase, ele sempre desviava os olhos em direção ao chão. Denotando arrependimento.
Dias e dias corriam. Não cessavam os tormentos do rapaz. Eis então que, numa madrugada qualquer, Gabriel abriu uma garrafa de vinho que compara logo cedo na bodega de seu Mara. Seu Mara era assim chamado em alusão a um sujeito afeminado que aparecia na tevê num desses seriados ou minisséries. De fato, seu Mara, por vezes, paquerava, com indiretas, os rapazes bem apessoados que apareciam na bodega. Era um velhote solteirão que tinha uma tristeza aparente no rosto e, para não dizer que vivia sozinho, tinha um gato com o nome de Carlão.
Sempre que chamava por Carlão, fazia uma entonação na voz que a deixava fanhosa e quase feminina. Mas seu Mara não dava muito valor a Gabriel, não como dava a outros rapazes. Pois, há muito tempo, Gabriel se envolvera com uma sobrinha do velhote que volta e meia andava pela bodega do tio.
Gabriel era um tipo caseiro. Tinha voz grave, ombros largos e sempre se dirigira com firmeza a seu Mara. Sempre gostou do velhote, Gabriel nunca o recriminara e até o admirava por assumir aquela sua postura na idade que estava e em meio a uma sociedade hipócrita e conservadora. E aquele jeitinho de seu Mara nunca o incomodara. Por vezes, se acabava de rir quando seu Mara chamava o gato Carlão. Apesar dos distúrbios que enfrentava atualmente, Gabriel era um jovem de cabeça saudável, sabia respeitar o posicionamento alheio em relação às escolhas que, decerto, cabe a cada um. Seu Mara via isso e tinha respeito pelo rapaz.
Então, tornou a beber a garrafa. A medida que bebia, o álcool fazia efeito, cumpria a sua função clássica de fazer esquecer tudo aquilo que persistia em sua memória. E, naquele momento, admitiu para si que aquelas imagens eram dela. Só podiam ser. Sim, sabia disso o tempo inteiro, mas, por fraqueza, nunca admitira. Todos aqueles traços o doíam tanto como um dia o fizeram bem.
— Ô meu Deus! Mas nem assim some! Berrava sozinho no quarto enquanto olhava o vinho com desdém. Era verdade que o vinho apagava, temporariamente, um pouco daquele tormento, mas, não completamente.
O infeliz cogitou a possibilidade de, durante o momento em que afogava as mágoas da forma mais clássica que há, pôr a trilha sonora que daria a sentença seca da sofrência. Exatamente. Pablo: a voz romântica. Mas parou um instante e se recompôs do delírio. Ainda não estava embriagado o suficiente. Não para tamanha sofrência.
E quem era aquela, de uma vez por todas ?
— Isabela ! Ô peste, Isabela ! Choramingava.
Já ultrapassava 1:30 da madrugada. De uma vez, Gabriel declarava de quem eram todas aquelas imagens. Isabela.
Isabela fora a moça mais apaixonante que o rapaz já conhecera. Sabe aquela diferente ? Era esse o maior adjetivo que ele a atribuía, se não o maior, o mais frequente, certeza. Ela era diferente de tudo e de todos, era a própria diferença.
Por fim, era aquela que detinha, nas mãos, o coração do pobre. Com clichê e tudo.
Passada aquela noite. No dia seguinte, Gabriel foi ao seu Mara comprar outra garrafa de sua terapia. Chegando lá, seu Mara fitou a garrafa que o rapaz pôs no caixa. Intrigado, seu Mara via que era um vinho de tipo diferente. Pouco comprado pelos clientes usuais. Então, seu Mara, com sua voz fanhosa, disse:
— Rapaz, só tem duas pessoas que andam pela bodega que gostam disso aí.
Gabriel, curioso, preguntou:
— Quem, seu Mara ?
O velhote respondeu:
— Você e uma moça. Ela me disse o nome outro dia.
Pensou, pensou. Por fim, exclamou:
— Ah ! Isabela o nome dela. Isabela !


MACÊDO, Gustavo de.

UM SONHO


De súbito, Jorge acordou duma sucessão de imagens terríveis. Pobre Jorge. Há muito não dorme, não é mais o mesmo. A rotina o definha devagar, mansamente. Só ele não percebia... Até a madrugada de 31 pro dia 01 de novembro. Isso. Mês onze, mês novo, mês de renovação. É mesmo interessante a ideia de que, a cada novo mês, se abre uma nova porta para a realidade. Tem também aqueles que acreditam que isso ocorre dum dia pro outro. Vai saber. O fato é que Jorge não via nada de novo. Batiam ali, seguramente, como em todos os outros dias que se passaram, 3:00 h da manhã. Parecia um ciclo. Jorge não sabia ao certo seu início. Muito menos o fim. Pobre Jorge. Tentou dormir de novo. Foi inútil. Deu 3:30, 4:00, 4:30. Não. Agora, ele tinha de tomar uma providência. Estava complicada a coisa. Claro. Levantou-se, fez um café e se pôs a escutar Los Hermanos num velho fone de ouvido que só prestava um lado. Começou a negar tudo aquilo que tinha visto. "Foi terrível", pensava. Jorge estava mesmo farto dessa cenazinha repetida. Estava cansado, o corpo doía, a cabeça, por vezes, dava marteladas internas numa tentativa de comunicar ao desgraçado que ele já estava abusando demais. Jorge estava mesmo extrapolando. Se dormisse, era um ato quase involuntário. Até aí tudo bem. Complicado mesmo era todo aquele confinamento. Mas, antes disso, o que fazia esse sujeito durante todo esse tempo de virgília ?
Devorava, progressivamente, os livros de literatura que dispunha. Era mesmo um apaixonado por contos, crônicas, romances. Quando uma ou outra leitura o causava tédio, ele recorria às crônicas de Luís Fernando Veríssimo e soltava gargalhadas contidas por conta do horário. Era estudante do curso de filosofia duma universidade local. Mas não ia à faculdade há meses, pois os professores da rede pública estavam todos de greve. Jorge achava um tanto chata aquela situação, porque o atrasava em sua formação acadêmica. Mas, por outro lado, apoiava com sensatez e afinco os professores, pois sabia do descaso, que já se estendia há um certo tempo, para com a classe. No fim das contas, foi até melhor a paralisação. Jorge estava tão emergido em suas reflexões filosóficas que estava dificultando o contato com outras pessoas. Ora, não é mesmo bom exagerar e reter-se apenas numa coisa, visto que há tantas outras para se explorar. Foi então que Jorge entregou-se aos livros de literatura. Não sei bem se entendeu a mensagem...
Jorge era novo, mas, principalmente ultimamente, andava com um aspecto envelhecido, com o cansaço estampado na cara.
Decidiu sair de casa numa noite dessas. Foi numa exposição cultural de um colégio de sua cidade. Chegando lá, encontrou um conhecido e pôs-se a conversar com o fulano. Conversa vai, conversa vem e eis que, depois de Jorge expôr a situação na qual se encontrava, o sujeito diz:
— Bicho, tu vai ficar doido. E sorri.
Jorge sorri e, saindo, diz:
— Tomara que daqui pra lá eu já tenha escrito uns quatro livros.
Ah, é. Este é um detalhe que quase me escapou. Jorge era escritor. E passava por uma nova fase, turbulenta, mas interessante. Passado aquele encontro, olhou ao redor e nada o chamava atenção. Não pensou duas vezes. Voltou para casa. Foi chegando e logo deitou-se, pois suas pernas o maltratavam por conta daquele meio tempo que passou caminhando e em pé. Apagou. Não sabe quando, como, mas sabe o porquê. A cena se repete. Mais uma vez, despertou repentinamente. Às 3:00 h da manhã. Fez todo aquele seu ritual e já umas 5:10 foi lá dentro de casa esquentar o café. Quando regressava ao quarto, reparou no céu. Estava lindo. Pequenas nuvenzinhas brancas cobriam aquele manto gigante e azulado. De modo que se via apenas umas brechas de todo aquele mar de cima. Já no quarto, pôs "Mon Nom", de Rodrigo Amarante. Jorge apreciava bastante o francês e as canções de Rodrigo. Foi então que resolveu tirar aquelas cenas que, desta vez, o fizeram acordar. Jogou-as nuns pedações de papel que sempre costumava rabiscar.
O que se passou então ?
Naquela noite...
Antes disso, há um outro detalhe que quase me esqueci. Jorge vinha passando por um momento delicado. Até aqui, não há algum segredo. Curiosa é a participação de uma mulher na vida de Jorge. Clarice. Ah, Clarice...
Não faz muito tempo. Jorge conhecera uma tal de Clarice na faculdade. Os dois se aproximaram e se identificaram bastante quase que de imediato. Foi tão natural que Jorge a convidou para sair com mais ou menos uma semana de conversa. Se iniciava então o início dum amor.
Era uma tarde ensolarada de Junho, uma quinta-feira, dum ano que me falha a memória. O fato é que foi esse dia que Jorge jamais esqueceu.
Clarice sempre fora uma moça linda e adorável. Eram incríveis os olhos dela quando via a figura barbuda e baixa de Jorge. Apesar de serem praticamente da mesma altura, ela sempre caçoava dele por ele ser baixinho. Jorge abria o largo sorriso. Adorava sorrir com Clarice. Adorava estar com ela, mesmo que nada fizessem. Só em ver o tempo passar ao lado dela era motivo duma expressão abobalhada que Jorge carregava para onde quer que fosse. Sem dúvidas, aquela cara de idiota era culpa dela e somente dela. Duraram pouco mais de seis meses juntos. Após a separação, ela mudou de curso. Sempre sonhou mesmo em ser psicóloga. Seguiu adiante então. Essa história pede outro conto ou, simplesmente, se encontra fragmentada pelos contos que Jorge produziu desde então.
E naquela noite, Jorge acordou com uma expressão de tristeza mais acentuada que nunca. Queria chorar, não sei se o fez. Sonhara que Clarice deixava de ser completamente quem um dia Jorge conheceu. Não era Clarice, não podia ser. No fundo, depois de grandes conflitos consigo mesmo, talvez, embora não quisesse, acreditava que Clarice já não era mais aquela Clarice. Não era mais sua e estava mesmo muitíssimo longe de ser, quiçá, outra vez.
Foi um sonho tenebroso. Daquele que se lembra os mínimos detalhes. Via a imagem da moça por completa desfigurada. Agora, ela tinha uma tatuagem na lateral esquerda da mão esquerda. Era algo escrito em francês, por ironia. Mais irônico ainda é o fato de , deste pormenor, Jorge não recordar muito bem. Forçou sua memória, de fato a espremeu, mas, por azar, nada saiu. Foram várias as hipóteses que formulou do que seria aquela possível palavra ou palavras. Ficou entre duas. Poderia ser algo do tipo: "Não há mais sentido persistir em algo passado", ou, "No fundo, eu ainda espero te encontrar. Corra, nem tudo está perdido."
E Jorge, depois de duas xícaras de café e várias meditações, saiu do quarto para olhar mais uma vez o céu. Estava mais aberto, mais convidativo.
As circunstâncias nada eram favoráveis. Um pingo de otimismo era algo irracional. E daquelas duas frases, Jorge gostou mesmo foi da segunda. Pensou nela mais uma vez e sorriu.


MACÊDO, Gustavo de.